Às leitoras e aos leitores...

O intuito deste blog é facilitar a comunicação, fazendo circular a informação e promovendo conexões de idéias e pessoas que se interessam pela capoeira angola.
As opiniões são pessoais e, portanto, de minha inteira responsabilidade, não correspondendo necessariamente a qualquer posição oficial do Grupo Nzinga.
Peço licença às mestras e mestres, de hoje e de sempre, para humildemente participar nessa roda. Sou um aprendiz. Procurarei mantê-lo atualizado e espero que seja de algum jeito útil.
Um abraço!

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Frede Abreu

Uma das coisas que me motivaram a começar este blog é a vontade de ajudar a divulgar informações que acho interessantes, valiosas.

Tenho um bocado de material em casa: livros, artigos, matérias de revistas, entrevistas, etc.. São coisas que a gente vai juntando aqui e acolá, recebe de alguém, acha na internet, compra.
Então, vou usar este espaço para continuar garimpando nesse acervo. Não é nada de mais, mas pode ser útil para alguém.

Hoje escolhi falar de dois livros do pesquisador da capoeira Frede Abreu: "O Barracão do mestre Waldemar" e "Capoeiras: Bahia, século XIX". O primeiro é mais antigo, de 2003. Eu já tinha visto e até folheado um exemplar de um amigo meu, o Swai, mas só tempos depois vim a comprar. Comprei da mão do Mestre Lua Rasta, aqui mesmo em Brasília. Aliás, o mestre trouxe uma verdadeira quitanda da capoeira pra cá, com atabaques, berimbaus, livros, dvds, cds e mais.



Este Barracão é uma obra de fôlego. Bem pesquisado, escrito e ilustrado, é presença obrigatória em qualquer biblioteca sobre capoeira. O livro é um passeio pelas estórias da nata da capoeiragem baiana na primeira metade do séc. XX: além do próprio Waldemar da Liberdade, figuras como Nagé, Traíra, Caiçara, Maré, Cabelo Bom, Bimba, Noronha, Pastinha e Canjiquinha. Tem cada história de prender a gente na leitura. É começar e não querer mais parar. Uma verdadeira aula.

O segundo livro, Capoeiras, encomendei diretamente com o Frede, que me mandou o exemplar lá de Salvador. Esse, de 2005, veio para ajudar a preencher uma lacuna na historiografia sobre a capoeiragem baiana. Fruto de uma pesquisa invejável, esse trabalho esclarece muita coisa do período e, onde não é possível encontrar evidências, lança hipóteses convincentes. Imperdível.



É claro que elogiar o trabalho do Frede é chover no molhado. Todos conhecem sua competência. Ainda assim, queria compartilhar esses pensamentos com vocês.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Filosofia banto

Na década de 30 do século passado, um missionário belga chamado Placide Tempels viveu 29 anos em missão no então Congo Belga, hoje a República Democrática do Congo.

Em contato com as populações residentes na bacia do rio Congo, ele escreveu "A filosofia banto" (La philosophie bantoue), publicado em 1949. Este livro é tão influente quanto polêmico.

O propósito de Tempels era entender o modo que esses povos pensavam e viam o mundo, principalmente sob o ponto de vista religioso. No entanto, muitos criticam o fato de que ele fez uma generalização, para todos os povos banto, de uma experiência restrita. Além disso, seu ponto de vista sempre foi o de um evangelizador cristão, com todos os preconceitos que isso significa.

Seja como for, feitas as devidas ressalvas, seu trabalho ainda é considerado fundamental para quem se interessa por filosofia africana.

Nei Lopes, em sua "Enciclopédia brasileira da diáspora africana", faz um resumo dos princípios básicos do livro:

1) o fundamento do universo e seu valor supremo é a vida e a força que a impulsiona e dela emana;

2) todos os seres devem ser entendidos como forças e não como entidades estáticas;

3) em qualquer circunstância, deve-se sempre procurar acrescentar força à vida e ao universo e evitar sua diminuição;

4) ocorrendo essa diminuição, deve-se buscar a intervenção dos adivinhos e ritualistas, porque eles conhecem as palavras que reforçam a vida;

5) a morte é um estado de diminuição do ser; mas os descendentes vivos de um defunto podem, através de oferendas, transmitir a ele ainda um pouco de vida: o morto sem descendentes está condenado a uma morte definitiva;

6) um indivíduo se define por seu nome: ele é o seu nome; e este é algo exclusivo e íntimo, indicativo de sua individualidade dentro do grupo a que pertence; e

7) todo ser humano constitui um elo vivo na cadeia das forças vitais: um elo ativo e passivo, ligado em cima aos elos de sua linhagem ascendente e sustentando, abaixo de si, a linhagem de sua descendência.

Essa energia vital é o que costumamos chamar de Ngunzo.

Através dela, todos os seres, vivos ou mortos, se inter-relacionam e influenciam. Há ações de forças que tendem a diminuir a energia vital e outras que a aumentam, fazendo interagir harmonicamente todas as forças que Nzambi criou e colocou à disposição do homem.

É isso.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Convoi funèbre d'un fils de roi nègre



Debret, Jean-Baptiste. "Voyage pittoresque et historique ao Brésil". 1839.

Percebam, mais à direita na imagem, o camarada dando um aú, ou partindo pra uma bananeira...

Na cosmologia dos bacongo1, o mundo dos espíritos, ku mpemba na língua quiconga, é um mundo invertido, onde se acumulam todas as potencialidades culturais, morais, físicas e espirituais. Ele se liga ao mundo físico por meio da kalunga, a linha sobre a qual se assentam os fundamentos da sociedade: a força da renovação, representada pelos jovens, a capacidade positiva das lideranças, e a experiência acumulada2.

Tais fundamentos sociais e filosóficos estão com certeza presentes na maioria dos grupos praticantes da capoeira angola, assim como em diversas outras manifestações ancoradas em raízes culturais tradicionais africanas.

Os movimentos de ponta-cabeça são uma característica da capoeira angola que logo sobressai quando a comparamos a outras culturas corporais, sejam elas artes marciais, danças ou mesmo terapias, existentes no mundo todo. De tão peculiares, seus variados aús, pontes, piões e bananeiras parecem revelar mais do que simples movimentos de transição entre duas posições em pé.

Nesse aspecto, a capoeira angola só é comparável ao hip-hop e, evidentemente, à capoeira regional. Mas a observação cuidadosa mostra que para além de uma motivação intensamente acrobática, angoleiros e angoleiras na verdade almejam um outro olhar sobre o mundo quando estão de cabeça para baixo.

Na capoeira angola, tanto o aú quanto a bananeira são definidos pela persistência do olhar sobre o outro, pela naturalidade do “andar” sobre as mãos, e por um cuidado em estar “fechado”, com as pernas flexionadas e prontas a defender o resto do corpo. Certamente é intrigante a pergunta sobre a origem dessa postura mais do que puramente estética.

Já se supôs ser essa uma reminiscência de um ritual iniciático, ou o resultado do objetivo de desenvolver uma técnica que demonstrasse a superioridade do negro sobre o branco, até mesmo símbolo do desejo de quebrar uma ordem social opressora, de conquistar a liberdade3. Talvez sim, mas é igualmente possível que haja uma razão mais profunda, ligada a valores religiosos herdados dos africanos.

Nesse sentido, parece mais do que simples acaso que os bacongo falem em na wu, literalmente um “movimento giratório”, quando descrevem o nosso aú4. A semelhança fonética é surpreendente, ainda que, de acordo com o dicionário Houaiss, a palavra brasileira tenha “origem obscura”. Tudo isso leva à indagação: Seria esse movimento, assim como plantar bananeira, uma evocação do mundo espiritual? Ou ainda, um legado da visão de mundo dos bantos da África Central ao Brasil?5

1 Refiro-me aqui aos povos do antigo Reino do Congo, que remonta pelo menos ao séc. XIII, e também aos de sua zona de influência cultural imediata, que hoje alcançaria, principalmente, os territórios da República Democrática do Congo (RDC), de Angola, da República do Congo (Brazzaville) e do Gabão.

2 Ver Fu-Kiau (2001).

3 Ver Lewis (1992).

4 Ver Thompson, prefácio, em Lewis (1992).

5 Nesse caso, pouco importa que tais laços encontrem ou não uma elaboração verbal nesses termos por parte de praticantes da capoeira angola, mas sim que façam parte de seu patrimônio tradicional herdado e cultivado.


NOTA - Esse verbete faz parte de um possível futuro "Dicionário de Capoeira Angola". Quem sabe...?

sábado, 4 de outubro de 2008

Meu caminho

Para Mestra Janja

Hoje eu faço o meu caminho

O caminho que me faz

Quantos anos na estrada?

Os meus mestre sempre mais!


Eh, foi na volta do mundo, colega véi

Na volta que o mundo dá

Tava andando sem meu rumo

Ai, ai, ai, Não podia nem pará.


Encontrei a capoeira

Oh meu Deus, Foi aqui neste lugar

Hoje eu canto pra Pastinha

Hoje eu sei a quem louvá.


Tantas lutas, tanta dor

Nunca deixo de lembrá

Quem aceita a injustiça, oi ai ai

Se perdeu sem se achá

Na roda da capoeira...

Na roda da capoeira!

Essa luta eu vou lutá.


Meu irmão, meu camarada

Ouça bem o meu cantá

A cobra mordeu o rabo

Seu veneno é de matá.


Se não sei pra onde eu vou

Ah, eu nunca chego lá

Quando esqueço de onde vim

O que eu fiz foi me enganá.


Salve mameto Kalunga

E também o Pai Lemba!


Camaradinho....

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Tempo


"Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo..."
Caetano Veloso, em "Oração ao tempo"


Quanto tempo é necessário para se tornar um mestre de capoeira angola?
Quanto tempo deve durar uma roda de capoeira?
E um golpe?!
Tempo é um dos inquices, uma das divindidades, do panteão do candomblé de angola.
Também é chamado de Kitembo.
Acredito que não tenha correspondente nos cultos das vertentes iorubá e jeje.
Pelo que aprendi, rege os ritmos e ciclos da vida: as estações do ano, o clima, as colheitas, a reprodução, os ventos e tempestades, o dia e a noite, a lua e o sol, o envelhecimento, a morte.
Pedro Abib, aluno do Mestre João Pequeno, fala um pouco sobre a noção africana de tempo em seu livro "Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda".
A cultura ocidental tem um apego imenso ao presente, enquanto que na perspectiva africana o passado não morre. Vive no presente e se projeta para o futuro, como uma luz sobre o caminho.
Ou seja, o tempo não é uma linha reta e sim uma espiral, um movimento circular. O hoje está prenhe de ontem, de modo que o que se passou renasce a todo momento.
Essa circularidade do tempo tem representação, por exemplo, no cosmograma kongo, na imagem da serpente que morde a própria cauda, e na idéia de sankofa.
Na capoeira angola, não seria a constante lembrança das "voltas que o mundo dá" parte dessa visão?
Sem falar em vários outros elementos em que a referência circular é fundamental, a começar da própria roda!
Aliás, vale lembrar que na África, o berimbau também serve para promover a comunicação com os mortos, os ancestrais. Será daí que vem a sua incrível força?
Seja como for, guardo comigo a lição de que a contagem mecânica, puramente cronológica do tempo é uma simplificação. Talvez devêssemos falar em tempos, no plural.
Voltando ao começo deste post, como decretar o tempo, quiçá em meses ou anos, necessário para alguém se tornar um mestre?
Ninguém diz, mas mesmo assim sabemos que há um tempo certo, que etapas devem ser cumpridas, que os degraus não podem ser maiores do que as pernas.
Enfim, que Kitembo é soberano.