
Debret, Jean-Baptiste. "Voyage pittoresque et historique ao Brésil". 1839.
Percebam, mais à direita na imagem, o camarada dando um aú, ou partindo pra uma bananeira...
Espaço de reflexão sobre a capoeira angola e tudo mais que com ela dialoga
Na cosmologia dos bacongo1, o mundo dos espíritos, ku mpemba na língua quiconga, é um mundo invertido, onde se acumulam todas as potencialidades culturais, morais, físicas e espirituais. Ele se liga ao mundo físico por meio da kalunga, a linha sobre a qual se assentam os fundamentos da sociedade: a força da renovação, representada pelos jovens, a capacidade positiva das lideranças, e a experiência acumulada2.
Tais fundamentos sociais e filosóficos estão com certeza presentes na maioria dos grupos praticantes da capoeira angola, assim como em diversas outras manifestações ancoradas em raízes culturais tradicionais africanas.
Os movimentos de ponta-cabeça são uma característica da capoeira angola que logo sobressai quando a comparamos a outras culturas corporais, sejam elas artes marciais, danças ou mesmo terapias, existentes no mundo todo. De tão peculiares, seus variados aús, pontes, piões e bananeiras parecem revelar mais do que simples movimentos de transição entre duas posições em pé.
Nesse aspecto, a capoeira angola só é comparável ao hip-hop e, evidentemente, à capoeira regional. Mas a observação cuidadosa mostra que para além de uma motivação intensamente acrobática, angoleiros e angoleiras na verdade almejam um outro olhar sobre o mundo quando estão de cabeça para baixo.
Na capoeira angola, tanto o aú quanto a bananeira são definidos pela persistência do olhar sobre o outro, pela naturalidade do “andar” sobre as mãos, e por um cuidado em estar “fechado”, com as pernas flexionadas e prontas a defender o resto do corpo. Certamente é intrigante a pergunta sobre a origem dessa postura mais do que puramente estética.
Já se supôs ser essa uma reminiscência de um ritual iniciático, ou o resultado do objetivo de desenvolver uma técnica que demonstrasse a superioridade do negro sobre o branco, até mesmo símbolo do desejo de quebrar uma ordem social opressora, de conquistar a liberdade3. Talvez sim, mas é igualmente possível que haja uma razão mais profunda, ligada a valores religiosos herdados dos africanos.
Nesse sentido, parece mais do que simples acaso que os bacongo falem em na wu, literalmente um “movimento giratório”, quando descrevem o nosso aú4. A semelhança fonética é surpreendente, ainda que, de acordo com o dicionário Houaiss, a palavra brasileira tenha “origem obscura”. Tudo isso leva à indagação: Seria esse movimento, assim como plantar bananeira, uma evocação do mundo espiritual? Ou ainda, um legado da visão de mundo dos bantos da África Central ao Brasil?5
1 Refiro-me aqui aos povos do antigo Reino do Congo, que remonta pelo menos ao séc. XIII, e também aos de sua zona de influência cultural imediata, que hoje alcançaria, principalmente, os territórios da República Democrática do Congo (RDC), de Angola, da República do Congo (Brazzaville) e do Gabão.
2 Ver Fu-Kiau (2001).
3 Ver Lewis (1992).
4 Ver Thompson, prefácio, em Lewis (1992).
5 Nesse caso, pouco importa que tais laços encontrem ou não uma elaboração verbal nesses termos por parte de praticantes da capoeira angola, mas sim que façam parte de seu patrimônio tradicional herdado e cultivado.