Às leitoras e aos leitores...
As opiniões são pessoais e, portanto, de minha inteira responsabilidade, não correspondendo necessariamente a qualquer posição oficial do Grupo Nzinga.
Peço licença às mestras e mestres, de hoje e de sempre, para humildemente participar nessa roda. Sou um aprendiz. Procurarei mantê-lo atualizado e espero que seja de algum jeito útil.
Um abraço!
sexta-feira, 24 de julho de 2009
O que faz alguém mestre de capoeira?
Uma das mesas de discussão tinha por tema o "ser mestre", ou algo assim, e era composta pelo Mestre João Pequeno e o então Contramestre Valmir, entre outros.
No decorrer do debate, Mestre Moraes, da platéia, tascou a pergunta, dirigida a Valmir, o mais novo daquela turma: "O que faz alguém mestre de capoeira?"
Que situação!
Uma daquelas em que parece que tudo pode acontecer.
Mestre Valmir, que teve muito bom professor, saiu-se na mandinga dessa sinuca de bico: "Deixo ao Mestre João Pequeno, como mestre mais velho aqui presente, responder a sua pergunta, mestre".
Foi a deixa para que todos pudessem ouvir a mais perfeita definição de mestre, vinda não de teorias, estudos acadêmicos ou especulações, mas da mais pura essência capoeirística: "O mestre quem faz são seus alunos".
Pois é, depois dessa, assunto encerrado.
Quanta sabedoria concentrada!
Simples e genial.
Definitivo.
João Pequeno de Pastinha.
Acho que Mestre Moraes deve ter concordado sem hesitação.
Até porque ele já era um exemplo vivo disso.
Essa história com certeza ainda vai ser contada direito por alguém.
Por agora, basta dizer que além de pessoalmente ter um papel central e incomparável no renascimento da capoeira angola a partir dos anos oitenta, Mestre Moraes deixou uma descendência reconhecida por toda a comunidade por seu apreço aos fundamentos.
São filhos, netos, bisnetos... e por aí vai.
Alunos de alunos de alunos de alunos... de Mestre Moraes!
Eu não conheço um descendente que não se orgulhe dessa escola.
Pois é, essa estória me contou quem estava lá.
Se foi exatamente assim, não sei.
Só sei que gosto dela desse jeito mesmo.
domingo, 15 de fevereiro de 2009
Só uns toques
Esse também é um tema que dá pano pra manga, a começar pelos toques em si.
Olhem por exemplo aquela famosa lista dos toques praticados por alguns dos principais mestres da capoeira angola da Bahia no século XX, coletados por Waldeloir Rego em seu livro "Capoeira Angola - Ensaio Sócio-Etnográfico", de 1968.
Pegando os Mestres Bigodinho, Bimba, Canjiquinha, Gato, Pastinha, Traíra e Waldemar, são listados os nomes de nada menos do que 32 toques!
Mas vejam que desses, 19 são executados por apenas algum dos mestres. Por exemplo, "angola dobrada" e "angola pequena" são só do Mestre Traíra, "estandarte" e "gêge" só do Mestre Waldemar, "muzenza" e "são bento grande em gêge" apenas do Mestre Canjiquinha, e por aí vai.
De outro lado, não mais que três toques são executados por todos esses famosos mestres: "cavalaria", "santa maria" e "são bento grande". No caso do toque "angola", hoje considerado como o mais característico desse estilo, dá até pra imaginar porque não foi mencionado por Mestre Bimba, mas é um pouco estranho que Mestre Waldemar não o tenha incluído em sua lista.
Tudo muito interessante, mas a coisa é ainda mais complicada...
Quem disse que os nomes correspondem ao mesmo jeito de tocar para cada um dos mestres? Tudo indica que não. O Kay Shaffer, na sua monografia "O Berimbau-de-barriga e seus Toques", de 1977, mostrou bem que um nome pode valer para mais de uma maneira de executar, assim como uma maneira de executar corresponder a diferentes nomes.
Nada disso mudou. Ainda hoje, não existe consenso nessa matéria e desconfio de que nunca vai existir. Mestre Cobra Mansa contou que uma vez perguntou a um mestre antigo como era determinado toque. Tempos depois, voltou a encontrar o mesmo mestre e ele mostrou um toque diferente. Há também o caso de dois dos mais famosos mestres da Bahia na atualidade, que não chegaram a um acordo sobre a maneira correta de se executar o são bento grande.
Deve ser por essa razão que meus mestres sempre falam que não é o nome que importa, mas saber fazer os toques e suas variações dentro do fundamento.
Por falar em fundamento, fazendo um parêntese, em minha opinião a obra mais interessante e aprofundada sobre a música da capoeira angola continua sendo a apostila "O Universo Musical da Capoeira", escrita pela Mestra Janja e publicada pelo Grupo de Capoeira Angola Pelourinho - GCAP, em agosto de 1994. Não é um texto técnico, de teoria musical, mas com certeza repleto de informações valiosas.
Mas vamos um pouco adiante, apenas para voltar a falar sobre a relação entre o toque e o tipo de jogo.
Mestre Noronha, em seu "ABC da Capoeira Angola", publicado em 1993 pelo Centro de Documentação e Informação Sobre a Capoeira - CIDOCA/DF, resume: o jogo de capoeira começa com o "jogo de dentro", que é "de grande obicervação", depois entram o "sambento grande", "de armação de golpe", e o "sambento pequeno" "para disfazer este golpe". O "samba de angola" era "para rasteira e joelhada" e o "panha laranja no chão tico tico" de "jogo baixo e alto".
Ele fala ainda do toque "quebra mi com gente macaco", "para balão de bouca de calça", e do "este negro é o cão", para "jogo violento". É curioso, pois esses nomes hoje em dia são associados a corridos e não a toques.
O Grupo Nzinga está entre os que preferem que a ladainha seja cantada na levada do angola. E assim costuma seguir a bateria numa roda. Mas já repararam que no CD do Mestre Pastinha as ladainhas são cantadas sim ao toque de angola, mas quando começam a chula e os corridos, o gunga puxa um são bento grande mais acelerado?
E falando em velocidade, todo mundo lembra do disco do Mestre Traíra, um dos maiores ícones da capoeira angola. Tem momentos em que ele acelera o ritmo até uma quase alucinação. Aliás, pelas músicas que deixou gravadas, dá pra concluir que Mestre Waldemar também prefere um andamento mais forte.
Excelente, ainda que em muitos momentos mais vale uma levada bem segura e lenta, quase solene, meditativa, diria até espiritualizada. Como a do Mestre Moraes em seu último CD, "Roda de Angola", de 2008, que foi vendido pela Revista Praticando Capoeira nas bancas do Brasil.
Mestre Decânio, em seu importante livro "A Herança de Mestre Bimba", também sustenta que a capoeira é uma só e que os toques definem o jogo a ser jogado. Em suas palavras:
- Cavalaria - jogo duro, pesado, violento.
- Iuna - jogo baixo, manhoso, sagaz, ardiloso, coreográfico, exibicionista, retorno ao estilo lúdico.
- Banguela e Banguelinha - jogo de dentro, corpo a corpo, colado, treinamento para defesa de arma branca.
- Idalina - jogo alto, solto, manhoso, rico em movimentos.
- São Bento Grande - jogo ao estilo regional, forte, rápido, mais para violência que para exibicionismo, viril sem perder a malícia.
- São Bento Pequeno, jogo mais suave, corpo a corpo, aceitando mais deslocamentos e malícia.
- Santa Maria - toque simples porém rápido, permite jogo solto e alto, aceitando bastante floreio.
- Amazonas - criação do Mestre Bimba, dificílimo de acompanhar, tal a riqueza de ritmos, a sutileza das variações melódicas, poucos capoeiristas conseguiam obedecer aos seus comandos, mais raros ainda os que conseguiam executá-lo no berimbau.
Quanta riqueza tem a capoeira! Infelizmente eu nunca tive a oportunidade de presenciar nada parecido. Aliás, o mais curioso é que, das vezes que assisti rodas de capoeira regional, em geral se começava com um toque de angola, antes do ritmo acelerar. Aí eu não conseguia perceber muita variação de toques e de tipo de jogo.
Na capoeira angola tampouco minha pouca experiência permitiu participar de rodas em que houvesse mudanças de toque para virar o jogo. Aliás, talvez não seja só inexperiência. Lembro-me bem que Mestre Cobrinha uma vez disse, se eu entendi direito, que ele também não tem notícia dessas viradas de toques comandando mudança de jogo.
Pois é, no final das contas, acho que tudo isso faz parte da diversidade e da essência livre da capoeira, com suas muitas vertentes e linhagens. Quem sabe respeitar seu mestre e sua escola, saberá respeitar as outras. Enfim, seja qual for o toque, é fácil reconhecer um bom tocador e, principalmente, seremos sempre levados a outras dimensões pela magia de um berimbau bem tocado.