Às leitoras e aos leitores...

O intuito deste blog é facilitar a comunicação, fazendo circular a informação e promovendo conexões de idéias e pessoas que se interessam pela capoeira angola.
As opiniões são pessoais e, portanto, de minha inteira responsabilidade, não correspondendo necessariamente a qualquer posição oficial do Grupo Nzinga.
Peço licença às mestras e mestres, de hoje e de sempre, para humildemente participar nessa roda. Sou um aprendiz. Procurarei mantê-lo atualizado e espero que seja de algum jeito útil.
Um abraço!

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Matéria histórica

Eu ainda nem tinha nascido. No dia 11 de fevereiro de 1967, a revista Realidade, que nem existe mais, publicou uma matéria importante sobre a capoeira.
O personagem principal é o saudoso Mestre Pastinha, cujo aniversário de passagem se celebra hoje.
Nela, o Mestre teve a rara oportunidade de falar um pouco mais sobre suas idéias e história.
Na reportagem, também há espaço para o Mestre Bimba, o não menos célebre criador da Luta Regional Baiana. (Detalhe: ao lado de Bimba, na última foto, de camisa azul, Mestre Bigodinho, como o povo de angola o chama, ou Mestre Gigante, assim chamado pelo pessoal da capoeira regional)
O texto é de Roberto Freire, psicólogo, já falecido, que viria a criar a somaterapia, à qual incorporou elementos da capoeira angola.
Tomo a liberdade de reproduzir essa matéria histórica aqui, até porque penso que não é tão fácil encontrá-la por aí.
Que seja uma pequena homenagem à memória dos mestres da capoeira, em especial, claro, do grande Mestre Pastinha!


(clique para ampliar)










Lembrando Mestre Pastinha

Hoje, 13 de novembro, há exatos 27 anos, morreu Vicente Ferreira Pastinha.
A parte conhecida de sua história é bastante divulgada, não carecendo repetir aqui.
Não era o único grande capoeira de sua época, contemporâneo que foi de lendas como Waldemar, Espinho Remoso, Traíra, Paulo dos Anjos e muitos outros.
Contou que aprendeu a capoeira com um velho africano de nome Benedito, do qual praticamente nada sabemos, mas que sem dúvida também era um grande mestre.
Mestre João Pequeno, discípulo mais antigo de Mestre Pastinha na atualidade, certa vez, perguntado sobre o que torna alguém um mestre de capoeira angola, disse, com toda sua genial e simples sabedoria: "O que faz o mestre são seus alunos".
Essa frase nunca saiu da minha cabeça e penso que em grande parte explica a grandeza de Mestre Pastinha.
Em vida, não lhe faltaram os detratores, os invejosos, os que não souberam compreender sua mensagem e seu valor. Pior ainda, até mesmo após sua morte houve aqueles que tentaram diminui-lo perante a história.
Em vão.
Mestre Pastinha, por seu exemplo, dedicação e obra, alcançou estatura única.
Mais do que isso, tantos anos depois de sua chegada ao mundo dos ancestrais, as sementes que deixou, e que se transformaram em novas árvores, são a maior prova de sua dimensão maior.
Obrigado Mestre!
Obrigado por tanto que nos deixou.
Aqui, do lado de cá da kalunga, continuaremos nos esforçando para merecer o seu legado.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Poder de cura

Inquice Lumueno, do povo Vili, região de Loango
(Museu Etnológico de Berlim)

Guarda dentro de si substâncias medicinais.
Cada detalhe tem um significado.
A tartaruga pode indicar a capacidade de transitar tanto no mundo dos vivos quanto no dos mortos, pois um ser anfíbio tanto mergulha quanto caminha fora da água.
Simbolicamente, a linha kalunga, que separa esses mundos, está sob as águas.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Remédios de Aruanda

Ai, ai, ai ai
Quando eu cheguei de Aruanda
Trouxe muitos remédios
Dentro da minha capanga
Eu não tenho o livro comigo. Sequer me lembro do nome. O que li pertence à Mestra Paulinha e estava em Salvador. Mas me lembro bem da entrevista com a Makota Valdina Pinto, pessoa de imenso conhecimento da cultura afro-brasileira.

Lá, Makota Valdina chamava a atenção para a importância de que as pessoas saibam por quê cantam certas músicas, em certas situações. Ela se referia de perto à religião, e citou como exemplo o refrão dessa música no começo do post, que por sinal faz parte do repertório do Grupo Nzinga.

Acho que entendo a preocupação da Makota. Certa vez, o Mestre Poloca ensinou que é normal não entendermos a princípio muitos dos códigos, rituais, letras e mandingas da capoeira, mas que é importante descobrirmos esses significados, sobretudo saber o que significam para nós mesmos.

No caso da nossa música aqui, sei que também é cantada em terreiros de candomblé e umbanda. E além de falar de uma forma poética da herança africana no Brasil, com certeza sopra muitos segredos.

Uma coisa que acho interessante sobre essa letra é a palavra "remédios". Aliás, já perguntava a Makota Valdina Pinto: "Por que remédios?"

Acredito que um pedaço da resposta pode estar, mais uma vez, em nossos ancestrais banto do Kongo. Na religião daqueles povos, os inquices, ou minkisi (plural de nkisi), são figuras sagradas, que passam por uma preparação ritual na qual adquirem poder curativo para as mais variadas enfermidades, físicas e espirituais. São, literalmente, remédios.

Seja qual for a resposta mais completa, minha convicção é que uma cultura que deixou uma marca tão profunda na religião (candomblé, umbanda), na música (samba, maracatu), nas folias (congada, capoeira), e muito mais, com certeza corre fundo na alma desse país. E pode aflorar a qualquer momento, com toda sua força e beleza.

sábado, 1 de novembro de 2008

Lutas da angola

Grupo Nzambi e convidados (sou o de chapéu)

No começo, era a briga pela sobrevivência.
A resistência contra a injustiça, diante de muita violência e sofrimento.
Rasteiras e cabeçadas contra a opressão.
Perseguição. Repressão. Dor.
A capoeira sempre sobreviveu.
E venceu muitas batalhas titânicas.
Pela liberdade, pela igualdade, por respeito.
Golpes, esquivas, mandingas e gingas.
Palavra, pensamento, filosofia e discussão.
Armas de ontem e de hoje.

Quais as lutas atuais da capoeira?
Com certeza, contra o racismo, tão real e dissimulado nesse Brasil.
Sem nenhuma dúvida, pelo reconhecimento do valor do saber tradicional.
Por uma velhice digna para os velhos mestres.
Pelo respeito à diversidade religiosa.
Etc. etc.

Dentre tantas lutas fundamentais, destaco uma, o combate ao machismo na própria capoeira.
Nenhuma surpresa, suponho.
Todo mundo sabe que essa é uma das bandeiras do Grupo Nzinga, um dos poucos no universo da capoeira angola com efetiva liderança feminina, sob a batuta de Mestra Paulinha e Mestra Janja.

Pra falar do tema, aproveito um material que preparei para um bate-papo do
qual participei, sobre o papel da mulher na capoeira.
Foi no aniversário do Grupo Nzambi, da Mestra Elma, outra exceção que confirma a regra, em maio deste ano, aqui mesmo em Brasília. (Pus a foto aí em cima)

Primeiro, pego emprestada (sem autorização prévia) uma frase da Mestra Janja:


"Partindo da tese que toma a capoeira enquanto uma estrutura social capaz de representar variados entendimentos sobre a vida social, se apresentado historicamente com capacidade para transgredir vários códigos e normas da ordem nas suas lutas de proteção e preservação, tais transgressões não incorporaram até o presente momento a proteção e a preservação dos direitos da mulher." (Janja)

De fato, quem tem olhos de ver e ouvidos de ouvir já percebeu que a capoeira, arma de libertação, muitas vezes entra em contradição consigo mesma, a partir de certas posturas autoritárias, até abusivas, que tentam negar às mulheres o que lhes é de direito e merecimento. Por que isso acontece?

Certamente não sou a pessoa mais indicada para responder, mas resolvi dar meu pitaco. E, para começar, creio que devemos pensar em como temos lidado com a tradição. Sim, pois não é difícil perceber que ela é muitas vezes usada mais como instrumento de reprodução e perpetuação de relações de poder do que qualquer outra coisa. Aí, fica a pergunta: até que ponto ela pode e deve ser reinterpretada e resignificada?

Tome-se o exemplo do candomblé, religião professada por muitos capoeiristas. Historicamente, as mulheres têm nele um lugar de destaque, senão de liderança máxima, o que aliás não é comum entre as religiões de um modo geral. Apesar de terem brotado da mesma raiz, estranhamente, a capoeira se transformou em um feudo masculino.

No passado, as mulheres capoeiristas
tinham que se masculinizar para ganhar espaço e respeito na capoeira. Basta ver seus apelidos: Maria Doze Homens, Rosa Palmeirão, Claudivina Pau-de-Barraca, Dora das Sete Portas, Maria Homem e Júlia Fogareira. Mulheres fortes, sem dúvida, que deixaram seus nomes na história. Mas será que ainda hoje as mulheres terão que conquistar seu espaço "na porrada"?

É triste costatar que em pleno século XXI as mulheres continuam se deparando com diversas formas de violência também no interior da capoeira.
Há depoimentos de várias formas de assédio, passando pela agressão sexual e psicológica. E o que é pior, muitas vezes partindo dos próprios mestres, dos responsáveis pelos grupos ou de alunos mais experientes.

Por outro lado, é preciso reconhecer que há muitas maneiras mais sutis de opressão. As letras de músicas, por exemplo. No Nzinga, chegamos a mudar letras "tradicionais" e não posso negar que dá uma ponta de orgulho em ver que cada vez mais grupos soltam a voz para dizer que a capoeira "tem homem e tem mulher". Tampouco cantamos canções que reforçam estereótipos femininos negativos.

Enfim, a questão é complexa e merece nossa reflexão. E ação. Que as mulheres possam assumir posições de liderança em seus grupos por seu próprio valor e merecimento, como qualquer pessoa, "pegar o gunga" e ajudar a capoeira a cumprir, mais uma vez, sua vocação revolucionária e libertadora.