Às leitoras e aos leitores...

O intuito deste blog é facilitar a comunicação, fazendo circular a informação e promovendo conexões de idéias e pessoas que se interessam pela capoeira angola.
As opiniões são pessoais e, portanto, de minha inteira responsabilidade, não correspondendo necessariamente a qualquer posição oficial do Grupo Nzinga.
Peço licença às mestras e mestres, de hoje e de sempre, para humildemente participar nessa roda. Sou um aprendiz. Procurarei mantê-lo atualizado e espero que seja de algum jeito útil.
Um abraço!

domingo, 28 de setembro de 2008

Cordel


A capoeira e o cordel estão frequentemente juntos, parecendo ser a capoeira cada vez mais uma inspiração para essa literatura popular.
Outro dia, por exemplo, o Esquilo, um visitante, me presenteou com o livreto "Manduca da Praia - O lendário capoeira do Rio Antigo", de Victor Alvim Itahim Garcia, apelido Lobisomem. A capa é essa aqui à direita. É obra recente, de 2007, com patrocínio do programa Capoeira Viva.




Outro cordel com temática capoeirística foi autorado por André Luiz Lacé Lopes e se chama "Capoeiragem no Rio de Janeiro e no Mundo" (capa à esquerda). Editado em 2004, é obra abrangente na abordagem, indo da capoeiragem carioca à capoeira angola, com direito a citação ao Grupo Nzinga.







Os cordéis também muitas vezes foram fontes diretas para ladainhas e corridos.
O caso mais conhecido deve ser o da "Peleja de Manoel Riachão com o Diabo", de Leandro Gomes de Barros, que surgiu no final do século XIX. Trechos dele já foram cantados, entre outros, pelo Mestre Waldemar e pelo Mestre Moraes. A capa aqui à esquerda é de uma edição que me foi enviada pelo amigo Alan Boccato.





É fato conhecido que Mestre Waldemar da Liberdade também bebeu (ou comeu...) em outro cordel, o "A vida de Pedro Cem", do mesmo Leandro Gomes de Barros, cuja capa reproduzo ao lado.
E parece que em outro ainda, talvez menos conhecido: "A história do Valente Vilela", cujo autor seria João Martins de Athayde, que transcrevo aqui na íntegra.
É longo, mas imagino que valha a pena...





A história do Valente Vilela

Meu povo, preste atenção
Ao que agora eu vou contá
De um home muito valente
Que morava num lugá
E até o próprio Gunvêrno
Tinha medo de o cercá.

Vilela era natural
Do sertão pernambucano,
E ele, desde o princípio
Que tinha o gênio tirano:
Comete o primeiro crime
Com a idade de dez ano.

Com doze ano de idade,
numa véspa de São João,
Vilela mais o seu mano
Tivero uma alteração;
Só por causa de um cachimbo,
Vilela mata o irmão.

Com quinze ano de idade,
Passando os três ao depois,
Vilela monta a cavalo,
Vai ao campo atrás duns bois;
Encontrou quatro rapaz;
Atirou num, matou dois.

Preparou-se pra caçá
Num domingo bem cedim,
Carregou a espingarda
Para matá passarim,
E na berada de um poço
Mata o fio de um padrim.

Casou com dezoito ano.
Com seis meze de casado,
Tando, um dia, trabaiando
Na derruba de um roçado,
Devido à queda de um pau
Vilela mata o cunhado.

O Agente de Puliça
Tratou de o persegui,
Sempre botando piquete
Mas Vilela sem cai,
Porque sabia de tudo
Pois era fio dali.

O Agente de Puliça,
Vendo que não o prendia,
Escreveu pra Capital,
Vê o que o Chefe fazia,
E exigindo grande tropa
De Linha e Cavalaria.

Nisso, o Chefe de Puliça
Mandou-lhe trinta soldado,
Agraduou um Tenente
Com ordes de Delegado:
Morreu, não escapou um
Para trazê-lhe o recado.

Ele tornou a mandá
Trinta e um homem iscuído,
Agraduou um Tenente
Este era mais destemido;
Morrêro da mesma forma
Que os outros tinha morrido.

Então, depois de seis mês,
Mandou outro contingente
Que tinha quarenta praça
E um cabo muito valente:
Escapou o corneta-mó
Pra se acabá de doente.

Este, chegando no Corpo,
Espaiou na Companhia,
Que era asnêra mandá tropa
Que o homem ninguém prendia,
Que a força levava tiro
Sem sabê de onde saía.

Fala o Alfere Negreiro
Ao Fiscal do Bataião:
- Basta o Comandante dá-me
Um mandado de prisão,
Eu mostro se esse Vilela
Visita a cadeia ou não!

Disse o Comandante a ele:
- Alferes, a coisa é medonha!
Você, cumo se oferece,
Acho bom que se diponha:
Você vai, não trás o home,
Chega aqui, me faz vergonha.

O Alfere disse a ele:
- Eu sei porque me ofereço;
Deixe eu escuiê a escolta
Dos soldados que eu conheço:
Se eu não trouxer preso ou morto,
Nunca mais que eu apareço!

Tendo o mandado de orde,
Os soldados se arrumáro;
Na manhã do outro dia
Se despidiro e marcháro;
Fora com muito cuidado,
Com quinze dia chegáro.

O Alfere entrou no Distrito
Às oito horas do dia:
Escreveu pro Delegado
Que lhe mandasse um bom guia,
Que lhe mostrasse o Vilela,
Que ele ali nada sabia.

O Delegado, em pessoa,
Saiu correndo até lá:
- Seu Alfere, eu vim aqui
Somente lhe aconseiá...
Si vem prender o Vilela,
Eu sou de acordo é voltá!

O Alfere respondeu:
- O sinhô logo não vê
Que esse pedaço de home
Que Deus consentiu nascê
Não morre antes de tempo,
Nem corre sem vê de quê?

Sai o Alfere vagando
Pelos campos do sertão...
Adiante encontra um rapaz
E dá-lhe voz de prisão:
- Você me mostra o Vilela,
Quer você queira, quer não!

Lhe disse o rapaz chorando:
- Que é que eu hei de fazê?
Eu vou mostrar o Vilela
Mas na certeza de que:
Tropa que cerca o Vilela
O resultado é morre...

- Siga, siga, rapazim,
Quando avistá a fazenda,
Chegue pra perto de mim,
Fale baixo que eu compreenda
Que é pr’eu botá-lhe num canto
Onde bala não lhe ofenda.

Pelas dez hora da noite
Diz, de repente, o rapaz:
- A casa do homem é aquela
Pregada àqueles currais,
Junto daqueles cercado,
Acostada por detrás.

Ai o rapaz foi solto
E a toda pressa voltou,
Correndo de serra abaixo,
Sem medo dos tombadô;
Parece que criou pena,
Bateu as asa, voou...

Saiu de ponta de pé
Tudo quanto era soldado...
Vilela, como ispriente,
Na sua rede deitado.
Acorda e diz à mulhé:
- Minha véia, eu tou cercado!

Fala o Alfere na porta:
- Vilela, tem paciença!
Vilela, me entrega as arma,
Eu não quero é violença...
Trata de compô a casa
Pr’eu fazê a diligença!

- Do tamanho que é a cozinha
Também pode sê a sala;
Da grossura do revólve
Também pode ser a bala...
Óio e não vejo ninguém,
Seu Alfere!Quem diabo é que me fala?

- Vilela, me abra a porta,
Deixe de machaveliça,
Conheça que tá cercado
Pela tropa da Puliça!
No Bataião me acompanha
Oficial de Justiça.

- Seu Alfere Delegado,
Eu não engano ninguém!
Muito lhe agradecerei
Não me enganando também...
Queira dizê, não me engane,
Seu Alfere!Quantas praças é que vem?

- Vilela, eu não te engano;
Trago cento e oitenta praça,
Negro nascido em baruio,
Criado em mêi de desgraça...
Pra te mandá pra outro mundo
Nem eu nem ninguém se embraça!


- Com ceito e oitenta praça
Brigo em pé, brigo de cóca...
As balas estralando em mim
E mio abrindo em pipoca...
E eu dou meu pescoço à forca,
Seu Alfere,Si me achá uma barroca!

- Si qué sê preso com honra,
Se renda, não faça ação!
Vim lhe buscá preso ou morto,
Não quero escutá sermão...
Ou você me abre a porta
Ou vai vê ela no chão!

- Eu só fazendo consigo
C’umo c’o cometa-mó...
O mió que o sinhô faz
Ê ganhá os mororó!
Mas si é de quebrá-me a porta,
Seu Alfere,Eu vou abri que é mió...

- Vilela, eu tenho comido
Toicinho com mais cabelo,
Mas o diabo é quem queria
Está hoje no seu pêlo...
Salte pro campo da honra,
Deixe, ao meno, eu conhecê-lo!

- Seu Alfere Delegado,
Largue de tanto zum-zum,
Que o homem que mata cem
Pode interar cento e um...
Eu hoje inda não comi,
Seu Alfere,Com você quebro o jejum!

- Vilela, você se engana,
Eu venho atrás de teu nome...
Tu és a trigue da terra,
Vilela, mas não me come!
Devido à corage, não,
Vilela, eu também sou home...

- Seu Alfere Delegado,
Vá procurar seu camim,
Vá criá sua famia,
Deixe eu criá meus fiím
Porque, si eu saí lá fora,
Seu Alfere,Sei que lhe encontro sozim!

- Vilela, eu tiro-te a moda
De matá pra estruí...
Ainda mêrmo eu sozim,
Não te deixo escapuli!
Si não abre a porta, diga
Que é pra vê ela caí.

- Seu Alfere Delegado,
Se mostra sê animoso...
Si não fô lambança sua,
Já vi home corajoso!
Mas botá-me a porta abaixo, Seu Alfere
Isto é que eu acho custoso...

- Vilela, tem paciença,
Vigie que eu lhe falo séro;
Desta feita você segue,
(Isto é quero porque quero)
Ou em corda pra cadeia
Ou em rede pro cimitéro!

- Seu Delegado, eu carrego
Comigo uma opinião:
Boi solto se lambe todo
Eu não me entrego à prisão!
Quero mêrmo que se diga,
Seu Alfere,Morto sim, mas preso não!...

- Vilela, me abra a porta,
Você só tem é relaxo...
Si você não abre, diga,
Que é pr’eu botá ela abaixo!
No encruzá dos batente
Teu sangue desce em riacho...

- Seu Alfere Delegado,
Conheça que eu não lhe engano:
Si botá-me a porta abaixo,
De dentro espirra tutano!
Si eu batê mão ao cangaço,
Seu Alfere,Chove bala vinte ano!

- Vilela, não seja besta,
Você não me faz terrô...
Eu trago é tropa de linha
Do Monarca Imperadô!
Eu lhe levo preso ou morto,
Sem você eu lá não vou!

- Seu Alfere Delegado,
Esta razão me agradou:
Você diz que é muito home,
Si é por fome, eu também sou!
Previna o destacamento,
Seu Alfere,Se prepare que eu já vou...


Quando o Alfere escutou
Bolí lá dentro nuns trem,
Previne a rapaziada:
- Prepara que o home aí vem!
(rodou a casa, sozim
Não encontrou mais ninguém).

- Seu Alfere Delegado,
Sua canáia corrêro...
E o sinhô o que é que faz
Que não ganha os marmelêro?
Mêrmo aqui só canta um galo, Seu Alfere,
Que sou eu neste terrêro!

Estando o Alfere oiando,
Notou que a porta rangiu,
Mas o escuro era tanto
Que ele oiou porém não viu...
Quando o Vilela pulou,
Logo dois tiro partiu.

- Seu Alfere Delegado
Atira mais que um Majó!
Eu cuidei de atirá bom,
Mas ele atira mió...
Entrou um tiro no outro,Seu Alfere,
Que me pareceu um .....

- Vilela, que é que eu te disse?
O Alfere véio não correu...
Fez negaça, desgraçou-se!
Buliu c’os quarto, morreu!
Você inda tá renitente
Porque não sabe quem sou eu...

- Seu Alfere Delegado,
Cade a força que tinha?
Só o sinhô não correu!
Tanto soldado que vinha...
Quem chegou aqui por galo,Seu Alfere,
Vai voltá cumo galinha...

O Alfere pegou no rife,
Ficou o tempo tinindo:
Era o dedo amolegando
E o fumaceiro cobrindo,
Batendo as bala em Vilela,
Voltando pra trás zinindo...

- Seu Alfere Delegado,
Bote fora o cravinote!
Pensa o sinhô que me ofende
Isso é bala de badoque...
Hoje nem Jesus lhe livra,Seu Alfere,
Da ponta do meu estoque!

Deixáro as armas de fogo,
Cada qual o mais ligêro;
Pegáro-se esses dois home
Em luta pelo terrêro:
Os punhaes davam faísca
Que só forja de ferrêro!

- Seu Alfere Delegado,
Nós vamo à marge do rio,
Assolamo pau e pedra,
Parecemo dois navio:
Deixemo as arma de fogo,Seu Alfere,
Já tamo é no ferro frio!

Com duas horas de luta,
O Alfere não pressentiu,
lntropicou de repente
E num buraco caiu:
Vilela saltou em cima
E, de malvado, se riu.

- Logo no primeiro salto
Perdeste o pé da chinela...
Que é do sinhô agora
Com a minha mão na guéla,
Com meu joêio em seus peito,Seu Alferes,
E meu punhal na costela?

Vilela, não é vantage,
Matá um home à treição:
Você, por pegá-me agora,
Devido a um intropicão,
Vai me matá cumo home,
Porém por covarde, não!

- Seu Alfere Delegado,
Bem cancei de lhe dizê...
Bem que eu tava descançando,
Viéro me aborrecê...
Hoje aqui só Deus lhe acode, Seu Alfere,
Se prepare pra morrê!

Disse o Alfere consigo:
Ó meu Deus tão poderoso,
Tende compaixão de mim,
Eu sou pai e sou esposo,
Livrai a mim de engulí
Este bocado amargoso.

Mas quando o Vilela tava
Com ele muito entretido,
Pensando que daí a pouco
Tivesse o Alfere morrido,
Saiu-lhe uma voz de parte:
- Não mate o home, marido!

- Saia-se daqui, mulhé,
Com o diabo de seus consêio!
Si o Alfere me matasse,
Você não achava feio...
Cumo eu tou matando ele,
Semvergonha,
Tu vem te metê no meio!

- Marido, não mate o home
Que ele nem lhe deu motivo...
Jesus foi tão judiado,
Sofreu, não foi vingativo.
Si és de matá o Alfere,
Me mate, deixe ele vivo!

Eu, quando ouvi as pisada,
Conheci que era você...
Certamente lá em casa
Não tem mais o que fazê!
Mêrmo em briga de dois home,
Descarada,Mulhé não tem que vim vê...

- Marido, eu nem nunca vi
Um gênio como esse teu...
Como é que tu quê matá
A quem nunca te ofendeu?
Si a tua tenção é esta,
Solte ele e mate eu!

- Não sei o que tem mulhé,
Que todas são cavilosa...
Para brigá c’os marido
São danada de teimosa!
Quando é pra fazê pedido, Cara lisa,
Tu fica toda dengosa...

- Marido, não mate o home
Que é casado e tem famia...
Você matando o Alfere,
Os inocente quem cria?
Veja que somo casado
Pode precisá-se um dia.

- Pois, então, diga ao Alfere
Que corra pelas estradas...
Sinão, ele sai daqui
Vendendo azeite às canada!
Diga que a minha mulhé, Seu Alfere,
Foi a sua adevogada!

Saiu o Alfere dali,
Tristonho e desconsolado
Porque se via sozim,
Sem sabê dos seus soldado!
Com o desgosto que teve,
Morreu no mato enforcado!...

Acaba o Vilela a briga
Também munto arrependido;
Saiu por detrás de casa,
Até dos fio escondido
Que nem mesmo a mulhé dele
Soube mais do seu marido...

- Mulhé, eu fiz seu pedido:
Não matei aquele hoine,
Mas me vou, de mato à dentro,
Me acaba de sede e fome,
Vou comê das fruita braba,
Porque quero,
Daquelas que os bruto come.

Sai o Vilela de casa,
Nos mato escói um canto,
E ninguém nunca pensava
Que ele vivesse tanto...
E, ao cabo de quarenta ano,
Morreu Vilela e foi Santo!

Alviça, meu povo todo,
Que a minha história acabou-se:
O Alfere foi valente
E, de valente, enforcou-se!
Mais valente foi Vilela:
Morreu, foi Santo e salvou-se!!!

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