Às leitoras e aos leitores...
As opiniões são pessoais e, portanto, de minha inteira responsabilidade, não correspondendo necessariamente a qualquer posição oficial do Grupo Nzinga.
Peço licença às mestras e mestres, de hoje e de sempre, para humildemente participar nessa roda. Sou um aprendiz. Procurarei mantê-lo atualizado e espero que seja de algum jeito útil.
Um abraço!
segunda-feira, 31 de outubro de 2011
"Viva Pastinha" - 10 Anos de Nzinga Brasília
sábado, 22 de maio de 2010
quarta-feira, 14 de abril de 2010
Senhor São Bento
sexta-feira, 24 de julho de 2009
O que faz alguém mestre de capoeira?
Uma das mesas de discussão tinha por tema o "ser mestre", ou algo assim, e era composta pelo Mestre João Pequeno e o então Contramestre Valmir, entre outros.
No decorrer do debate, Mestre Moraes, da platéia, tascou a pergunta, dirigida a Valmir, o mais novo daquela turma: "O que faz alguém mestre de capoeira?"
Que situação!
Uma daquelas em que parece que tudo pode acontecer.
Mestre Valmir, que teve muito bom professor, saiu-se na mandinga dessa sinuca de bico: "Deixo ao Mestre João Pequeno, como mestre mais velho aqui presente, responder a sua pergunta, mestre".
Foi a deixa para que todos pudessem ouvir a mais perfeita definição de mestre, vinda não de teorias, estudos acadêmicos ou especulações, mas da mais pura essência capoeirística: "O mestre quem faz são seus alunos".
Pois é, depois dessa, assunto encerrado.
Quanta sabedoria concentrada!
Simples e genial.
Definitivo.
João Pequeno de Pastinha.
Acho que Mestre Moraes deve ter concordado sem hesitação.
Até porque ele já era um exemplo vivo disso.
Essa história com certeza ainda vai ser contada direito por alguém.
Por agora, basta dizer que além de pessoalmente ter um papel central e incomparável no renascimento da capoeira angola a partir dos anos oitenta, Mestre Moraes deixou uma descendência reconhecida por toda a comunidade por seu apreço aos fundamentos.
São filhos, netos, bisnetos... e por aí vai.
Alunos de alunos de alunos de alunos... de Mestre Moraes!
Eu não conheço um descendente que não se orgulhe dessa escola.
Pois é, essa estória me contou quem estava lá.
Se foi exatamente assim, não sei.
Só sei que gosto dela desse jeito mesmo.
segunda-feira, 11 de maio de 2009
De volta a Dakar
Como muitos se lembram, o primeiro também foi lá, em 1966, e ficou famoso entre os capoeiristas pela presença de Mestre Pastinha na delegação brasileira, junto com os também angoleiros João Grande, Gildo Alfinete, Gato, Roberto Satanás e Camafeu de Oxóssi.
O tema do festival pioneiro foi "O significado das artes e cultura negra na vida dos povos e para os povos". Houve também uma segunda edição, acontecida em Lagos, na Nigéria, em 1977, com o tema "Civilização Negra e Educação".
Segundo a divulgação do evento, o Brasil é convidado de honra desta edição, cujo tema é "Renascimento Africano", e já estaria em curso o processo de organização de nossa participação, junto com outros 80 países! Para tanto já teriam sido criados comitês, disponibilizada uma verba inicial de R$ 3 milhões e estabelecido um calendário de eventos preparatórios.
Não obtive informação sobre qual será a contribuição da capoeira desta vez. Em 1966, pleno regime militar, o Itamaraty escolheu os representantes brasileiros de maneira unilateral, principalmente sem consultar representantes do movimento negro. Essa postura, nada democrática como seria de se esperarnaquela altura, também tinha respaldo em uma tentativa deliberada de não reconhecer a agenda colocada pelas lideranças afro-descendentes.
Hoje, evidentemente, os tempos são outros, e o próprio protagonismo da Fundação Palmares indica uma grande mudança qualitativa. Resta esperar e verificar que, em meio à infinita riqueza da cultura afro-brasileira, a escolha de nossos representantes seja pautada por critérios justos e democráticos. E que lá esteja a capoeira angola!!!
quarta-feira, 22 de abril de 2009
Segundo "Viva Pastinha"
A abertura foi na Fundação Cultural Palmares, com a presença de seu atual presidente, Zulu Araújo, bem como de outros convidados e convidadas ilustres, como os professores Nelson Inocêncio e José Jorge Carvalho.
Ao longo da programação, que mesclou muita arte e capoeira com discussões aprofundadas, aprendemos muito com as palestras do pesquisador Sales Augusto dos Santos e do professor Edson Cardoso, diretor do Jornal Irohin.
Na parte cultural, foram marcantes a oficina de frevo de Uirá Dias, o espetáculo do Boi de Seu Teodoro, a aula de dança dos inquices do Tata Mutá Imê e o forró arretado de Sivuquinha. Além, é claro, do grande Tião Carvalho e da Orquestra Nzinga de Berimbaus!
Tudo permeado pelos ensinamentos dos Mestres Paulinha, Janja e Poloca, em treinos e rodas cheias de ngunzo. Sem falar na presença vibrante da família Nzinga e de amigos, tanto de Brasília mesmo quanto gente como as meninas alunas de Leninho e Guaraná, de Goiânia, Dênis de Angolinha, Silvinho da FICA e Jorge do Grupo Zimba.
Pra mim, então, o gosto foi ainda mais especial porque no final fui feito treinéu do Grupo Nzinga, uma honra e uma emoção nunca imaginadas e impossíveis de descrever.
Esse clipe mostra um pouco do que foram aqueles momentos. Espero que curtam.
Realização:
INCAB - Instituto Nzinga de Estudos de Capoeira Angola e Tradições Educativas Banto no Brasil
Grupo Nzinga de Capoeira Angola - núcleo DF
Edição:
Camila Dutervil
Lucas Henrique de Paula
Filmagens:
Estúdio Zumbayllu
Apoio:
FAC - Secretaria de Cultura do Distrito Federal
terça-feira, 31 de março de 2009
Ditado mandinga
o amanhã vem.
Se você não espera pelo amanhã,
o amanhã vem.
Fábula hauça
Dois sapos caíram dentro de uma cabaça cheia de leite e não conseguiam sair.
Os sapos tentavam não afundar no leite quando um disse ao outro:
- Eu tô ficando cansado. Hoje é meu último dia na Terra.
Ele disistiu, afundou, e morreu.
O outro também estava cansado, mas continuou tentando.
Depois de um tempo, seus movimentos transformaram a gordura do leite em manteiga e ele conseguiu escalar e pular fora da cabaça.
Deus disse:
- Mantenha-se de pé que eu posso ajudar você!
domingo, 15 de fevereiro de 2009
Só uns toques
Esse também é um tema que dá pano pra manga, a começar pelos toques em si.
Olhem por exemplo aquela famosa lista dos toques praticados por alguns dos principais mestres da capoeira angola da Bahia no século XX, coletados por Waldeloir Rego em seu livro "Capoeira Angola - Ensaio Sócio-Etnográfico", de 1968.
Pegando os Mestres Bigodinho, Bimba, Canjiquinha, Gato, Pastinha, Traíra e Waldemar, são listados os nomes de nada menos do que 32 toques!
Mas vejam que desses, 19 são executados por apenas algum dos mestres. Por exemplo, "angola dobrada" e "angola pequena" são só do Mestre Traíra, "estandarte" e "gêge" só do Mestre Waldemar, "muzenza" e "são bento grande em gêge" apenas do Mestre Canjiquinha, e por aí vai.
De outro lado, não mais que três toques são executados por todos esses famosos mestres: "cavalaria", "santa maria" e "são bento grande". No caso do toque "angola", hoje considerado como o mais característico desse estilo, dá até pra imaginar porque não foi mencionado por Mestre Bimba, mas é um pouco estranho que Mestre Waldemar não o tenha incluído em sua lista.
Tudo muito interessante, mas a coisa é ainda mais complicada...
Quem disse que os nomes correspondem ao mesmo jeito de tocar para cada um dos mestres? Tudo indica que não. O Kay Shaffer, na sua monografia "O Berimbau-de-barriga e seus Toques", de 1977, mostrou bem que um nome pode valer para mais de uma maneira de executar, assim como uma maneira de executar corresponder a diferentes nomes.
Nada disso mudou. Ainda hoje, não existe consenso nessa matéria e desconfio de que nunca vai existir. Mestre Cobra Mansa contou que uma vez perguntou a um mestre antigo como era determinado toque. Tempos depois, voltou a encontrar o mesmo mestre e ele mostrou um toque diferente. Há também o caso de dois dos mais famosos mestres da Bahia na atualidade, que não chegaram a um acordo sobre a maneira correta de se executar o são bento grande.
Deve ser por essa razão que meus mestres sempre falam que não é o nome que importa, mas saber fazer os toques e suas variações dentro do fundamento.
Por falar em fundamento, fazendo um parêntese, em minha opinião a obra mais interessante e aprofundada sobre a música da capoeira angola continua sendo a apostila "O Universo Musical da Capoeira", escrita pela Mestra Janja e publicada pelo Grupo de Capoeira Angola Pelourinho - GCAP, em agosto de 1994. Não é um texto técnico, de teoria musical, mas com certeza repleto de informações valiosas.
Mas vamos um pouco adiante, apenas para voltar a falar sobre a relação entre o toque e o tipo de jogo.
Mestre Noronha, em seu "ABC da Capoeira Angola", publicado em 1993 pelo Centro de Documentação e Informação Sobre a Capoeira - CIDOCA/DF, resume: o jogo de capoeira começa com o "jogo de dentro", que é "de grande obicervação", depois entram o "sambento grande", "de armação de golpe", e o "sambento pequeno" "para disfazer este golpe". O "samba de angola" era "para rasteira e joelhada" e o "panha laranja no chão tico tico" de "jogo baixo e alto".
Ele fala ainda do toque "quebra mi com gente macaco", "para balão de bouca de calça", e do "este negro é o cão", para "jogo violento". É curioso, pois esses nomes hoje em dia são associados a corridos e não a toques.
O Grupo Nzinga está entre os que preferem que a ladainha seja cantada na levada do angola. E assim costuma seguir a bateria numa roda. Mas já repararam que no CD do Mestre Pastinha as ladainhas são cantadas sim ao toque de angola, mas quando começam a chula e os corridos, o gunga puxa um são bento grande mais acelerado?
E falando em velocidade, todo mundo lembra do disco do Mestre Traíra, um dos maiores ícones da capoeira angola. Tem momentos em que ele acelera o ritmo até uma quase alucinação. Aliás, pelas músicas que deixou gravadas, dá pra concluir que Mestre Waldemar também prefere um andamento mais forte.
Excelente, ainda que em muitos momentos mais vale uma levada bem segura e lenta, quase solene, meditativa, diria até espiritualizada. Como a do Mestre Moraes em seu último CD, "Roda de Angola", de 2008, que foi vendido pela Revista Praticando Capoeira nas bancas do Brasil.
Mestre Decânio, em seu importante livro "A Herança de Mestre Bimba", também sustenta que a capoeira é uma só e que os toques definem o jogo a ser jogado. Em suas palavras:
- Cavalaria - jogo duro, pesado, violento.
- Iuna - jogo baixo, manhoso, sagaz, ardiloso, coreográfico, exibicionista, retorno ao estilo lúdico.
- Banguela e Banguelinha - jogo de dentro, corpo a corpo, colado, treinamento para defesa de arma branca.
- Idalina - jogo alto, solto, manhoso, rico em movimentos.
- São Bento Grande - jogo ao estilo regional, forte, rápido, mais para violência que para exibicionismo, viril sem perder a malícia.
- São Bento Pequeno, jogo mais suave, corpo a corpo, aceitando mais deslocamentos e malícia.
- Santa Maria - toque simples porém rápido, permite jogo solto e alto, aceitando bastante floreio.
- Amazonas - criação do Mestre Bimba, dificílimo de acompanhar, tal a riqueza de ritmos, a sutileza das variações melódicas, poucos capoeiristas conseguiam obedecer aos seus comandos, mais raros ainda os que conseguiam executá-lo no berimbau.
Quanta riqueza tem a capoeira! Infelizmente eu nunca tive a oportunidade de presenciar nada parecido. Aliás, o mais curioso é que, das vezes que assisti rodas de capoeira regional, em geral se começava com um toque de angola, antes do ritmo acelerar. Aí eu não conseguia perceber muita variação de toques e de tipo de jogo.
Na capoeira angola tampouco minha pouca experiência permitiu participar de rodas em que houvesse mudanças de toque para virar o jogo. Aliás, talvez não seja só inexperiência. Lembro-me bem que Mestre Cobrinha uma vez disse, se eu entendi direito, que ele também não tem notícia dessas viradas de toques comandando mudança de jogo.
Pois é, no final das contas, acho que tudo isso faz parte da diversidade e da essência livre da capoeira, com suas muitas vertentes e linhagens. Quem sabe respeitar seu mestre e sua escola, saberá respeitar as outras. Enfim, seja qual for o toque, é fácil reconhecer um bom tocador e, principalmente, seremos sempre levados a outras dimensões pela magia de um berimbau bem tocado.
quarta-feira, 28 de janeiro de 2009
Mestre Canjiquinha e o espírito da capoeira regional contemporânea
Outro dia eu pus no ar essa enquete: "Que angoleiro famoso disse: 'Não existe capoeira regional nem angola. Existe capoeira'".
A maioria dos seis leitores que responderam acertou. Foi o Mestre Canjiquinha (foto), conforme está registrado no livro "Canjiquinha - alegria da capoeira", uma coletânea de depoimentos publicada em 1989, pela Editora A Rasteira, sob a coordenação de Antônio Moreira.
Vou botar a citação completa, que está na página 21:
"Não existe capoeira regional nem angola. Existe capoeira. Apelidaram capoeira de angola porque foi praticada, aqui no Brasil, por volta de 1855 pelos escravos na sua maioria angolanos.
Então, eles ficavam na senzala treinando. Eles viram que dava para se defenderem com ela. Então, botaram o nome de capoeira angola.
MAS, CAPOEIRA É BRASILEIRA.
O ÚNICO ESPORTE BRASILEIRO É CAPOEIRA.
EU SOU CAPOEIRISTA. NÃO SOU NEM ANGOLEIRO NEM REGIONAL.
Porque não canto música em angola, que não sou de candomblé. eu canto capoeira e jogo capoeira.
Agora, capoeira é de acordo com o toque. Se você está numa festa: se tocar bolero você dança bolero; se tocar samba você dança samba; - a capoeira é conforme: tocando maneiro você dança amarrado; tocando apressado você apressa.
O ÚNICO ESPORTE BRASILEIRO É CAPOEIRA."Uma das coisas que me chama a atenção nessa fala é que ela cabe tranquilamente no discurso de grande parte dos praticantes da atual capoeira regional, às vezes auto-denominada de contemporânea.
Digo porque já ouvi algo parecido várias vezes. Também já li, principalmente em revistas como a Praticando Capoeira, a Ginga Capoeira, a Revista Capoeira e a Cordão Branco, que sempre trouxeram entrevistas com mestres de várias partes do Brasil.
Um resumo bem resumido dessa, digamos, ideologia: (i) capoeira é uma só; (ii) capoeira é brasileira; (iii) o que manda no jogo é o toque.
Mestre Canjiquinha foi reconhecidamente um grande angoleiro. Chegou a unir-se a Mestre Pastinha por um tempo, como contramestre do CECA, mas sempre teve estilo próprio. Respeitado por todos, seus alunos já nos anos 40 ou 50 começaram a sair da Bahia. Hoje, vários grupos de capoeira angola proclamam sua herança.
A dúvida, então, é saber como ele de certa forma se tornou uma espécie de patrono desse jeito contemporâneo de encarar a capoeira. Não sei a resposta, mas acho que uma comparação entre Canjiquinha e Pastinha talvez ajude a pensar.
Pensem comigo. Mestre Pastinha resgatou a capoeira angola, inovando, com o olhar posto nas origens, na África, voltando-se para a tradição como referência básica. Mesmo as grandes e decisivas mudanças que introduziu foram iluminadas por esse espírito, que passou a inspirar gerações de capoeiristas depois dele.
Mestre Canjiquinha também era a própria tradição. Isso não se questiona. Mas com uma diferença. Evidentemente, ele tinha uma visão mais aberta da capoeira, sempre pronta para receber outras influências, voltada para o futuro, pré-disposta a mudar. Por outro lado, não escondeu que para ele a capoeira era brasileira. Ponto.
Esse jeito de ver as coisas pode ter sido a senha para os praticantes da capoeira regional, criada por Mestre Bimba já sob o signo da novidade e da "evolução", entrarem em um processo ininterrupto de metamorfose. Não pode ser à toa que hoje em dia tem tanta modalidade híbrida de capoeira regional com outras lutas, danças, terapias, etc.. Isso não se observa com a capoeira angola. Aliás, até mesmo a capoeira angola foi em certo momento (re)enxertada nessa sempre "nova" capoeira.
A propósito, como contraponto, é curioso constatar que a capoeira regional nas regras originais de Mestre Bimba, modernamente representada de maneira mais do que distinta pelo trabalho de seu filho, Mestre Nenel, se tornou ela própria uma exceção, quase uma seita tradicionalista, em meio ao turbilhão da capoeiragem contemporânea. Será que ela sobreviveria se não fosse assim?
sexta-feira, 16 de janeiro de 2009
Filosofia do movimento
Mesmo as pessoas que não conseguem entender direito a lógica do jogo e da roda costumam compreender isso.
Em geral, essas pessoas comparam a angola com a capoeira mais conhecida para elas, a capoeira regional.
O que é diferente?
Em minha opinião, muitas coisas, mas um aspecto se destaca imediatamente para quem assiste: a estética do jogo.
Já andei falando alguma coisa sobre isso, ao abordar a questão do olhar sobre o mundo a partir de uma posição invertida.
No livro da Maya Talmon-Chvaicer, que eu comentei no dia 2 de dezembro passado, ela traz uma informação muito interessante, que deve ser bem conhecida por quem estuda dança clássica, mas era desconhecida pra mim.
É uma citação de uma dançarina chamada Deborah Bertonoff. Segundo ela, o ideal dominante da arte grega antiga, base da cultura ocidental, era a linha reta, no sentido de uma aspiração de elevação do espírito e da alma.
Na dança, esse ideal se expressa ainda hoje no ballet clássico, onde dançarinos e dançarinas são treinados incessantemente para, digamos, flutuar, ou seja, descolar-se do chão e almejar o ar.
Que diferença em relação à filosofia angoleira!
Sim, porque o movimento, o jeito de corpo, também é uma filosofia viva.
Pensando por aí, é fácil entender o estranhamento que muita gente sente ao ver nossa brincadeira.
Mestre Poloca uma vez me contou um episódio ilustrativo disso: Tendo ido ao médico para tratar uma dor, não me lembro onde, o dito doutor recomendou-lhe simplesmente que deixasse de praticar a capoeira, pois o homem não tinha sido feito para se movimentar daquela maneira!! Dá pra acreditar?
Quanta incompreensão! Almejamos o céu também, com tudo que tem de forte e sagrado, mas é no chão que buscamos a energia dos ancestrais e da terra. Mãos e cabeça nos apóiam e conectam com esse "outro" mundo.
Vejam, aliás, que nesse sentido a própria capoeira regional, com suas posturas corporais retas, golpes altos e saltos cada vez mais acrobáticos, significou uma aproximação àquele antigo ideal grego.
Se isso for verdade, têm toda razão os que afirmam que a capoeira regional é mais ocidentalizada e a capoeira angola mais africanizada.
terça-feira, 9 de dezembro de 2008
Pra inglês ver?
domingo, 7 de dezembro de 2008
Tem alguma coisa errada com a capoeira angola?
Brasil afora e pelos quatro cantos do mundo, hoje é possível encontrar angoleiras e angoleiros de valor.
Também não tem paralelo a quantidade de informações agora disponíveis, pelos mais variados meios, aos interessados na arte.
São livros, revistas, CDs, DVDs, teses e mais.
Na internet, os grupos se organizam para estar on-line, divulgando e promovendo suas atividades.
É raríssimo um evento cuja programação não inclua debates, palestras, exposições, lançamentos e outras formas de difusão da informação.
Onde fica a relação mestre-aprendiz, mais velho-mais novo, fundamento da transmissão do saber ancestral, em meio a essa avalanche?
Eu pergunto porque venho reparando, aqui e acolá, alguns sinais que me deixam com a pulga atrás da orelha.
Pra exemplificar, cito acontecimentos recentes.
Alguns eu mesmo presenciei.
Outros, me contaram.
Não vou revelar nomes.
Um deles envolveu um velho mestre baiano, muito conceituado e respeitado.
Convidado a lançar seu CD, organizou-se uma roda em sua homenagem.
E não é que aí mesmo um capoeirista colocou o dedo em riste na cara do mestre, desdenhando sua autoridade, seja como mestre, seja como pessoa idosa?
Outro episódio aconteceu com um conhecido mestre carioca, admirado por sua índole e trabalho.
Fora do país para uma série de workshops, como gostam de dizer por lá, só então ficou sabendo que haveria uma deserção em massa de seu grupo.
Até aí tudo bem. Divergências acontecem.
O problema é que não o trataram como qualquer mestre, por ser mestre, merece.
Pra não alongar demais o papo, um último caso, em que um famoso mestre baiano jogou com um novato.
Resumindo, acossado por mãos na cara e outras artimanhas muito além da sua capacidade de reação, o coitado mal conseguiu ficar em pé na roda, saindo dali visivelmente humilhado.
Fiquei pensando com meus botões: quais os valores éticos que a capoeira angola está semeando?
Muitos gostam de salientar uma certa ética da malandragem, da malícia e da falsidade.
Tudo bem.
Mas será que ela vale contra o forte e contra o fraco?
Contra o jovem e contra o velho?
Na roda e na vida?
Sempre?
Quem nunca ouviu estórias de desonestidades entre capoeiristas?
Inclusive de mestres ou professores com seus próprios alunos!
Uma coisa que pode estar acontecendo é que a questão comercial, a ganância para ocupar novos "mercados", esteja levando algumas pessoas a passar por cima de certos valores de convivência e respeito, indo contra a própria essência comunitária da capoeira angola.
Talvez a própria velocidade da expansão, nem sempre acompanhada em maturidade pelos angoleiros e angoleiras em formação, seja um fator.
Não sei o que vocês pensam.
Será que os exemplos que eu mencionei são motivo para preocupação?
Qual o significado de valores como justiça, liberdade, ancestralidade e solidariedade para angoleiros e angoleiras de hoje e, principalmente, de amanhã?
No mínimo, acho que cada grupo e cada capoeirista pode pensar sobre qual capoeira angola quer para si.
terça-feira, 2 de dezembro de 2008
Do cultural ao multi-cultural
O título em português, se ele vier a ser editado em nossa lingua, poderia ser "A história oculta da capoeira: uma colisão de culturas na dança-luta brasileira".
Ele chama a atenção pois é o primeiro no gênero que vai por uma linha histórica-cultural-social, combinada com pesquisa antropológica, como diz a autora.
Eu acho essa abordagem muito interessante, pois ajuda a entender de uma maneira mais completa as origens de tantas coisas na capoeira. Aliás, eu mesmo já escrevi aqui no blog sobre a conexão entre cultura banto-kongo, aús e bananeiras, por exemplo.
O livro tem muita informação interessante e dá seguimento a uma das "tradições" atuais da capoeira: é provável que os Estados Unidos sejam o país onde mais se publica sobre o tema da capoeira, principalmente juntando muita pesquisa (sem desmerecer o fato de que o livro tem origem na tese de mestrado de Maya, defendida na Universidade de Haifa, Israel). Na área acadêmica, talvez nem o Brasil rivalize.
É evidente que isso acontece na proporção em que a arte conquistou corações, corpos e mentes ao norte do Rio Grande, aquele lá da fronteira com o México...
A gente deve estar conscientes de que isso tem conseqüências sobre a própria história da capoeira. Seja no que vem pela frente, a forma como ela será praticada e entendida no futuro, ou na maneira como o passado é contado e interpretado.
Cada pessoa que começa a aprender a capoeira angola vai combinar, de uma maneira única, sua bagagem pessoal com os ensinamentos tradicionais, ancestrais, passados por seu mestre.
Consigo, como sabemos, cada pessoa traz não apenas seu jeito de ser, sua personalidade, mas também sua cultura, herança da vida em sociedade. E as comunidades da capoeira são, - e com certeza serão, cada vez mais multi-culturais.
Nada mais natural, aliás, já que a capoeira certamente tem em si diversas influências culturais, que se fertilizaram mutuamente no Brasil da diáspora africana, assim como em contato com a matriz européia-portuguesa e a das nações indígenas que viviam nesse território.
quinta-feira, 13 de novembro de 2008
Matéria histórica
O personagem principal é o saudoso Mestre Pastinha, cujo aniversário de passagem se celebra hoje.
(clique para ampliar)
Lembrando Mestre Pastinha
A parte conhecida de sua história é bastante divulgada, não carecendo repetir aqui.
Não era o único grande capoeira de sua época, contemporâneo que foi de lendas como Waldemar, Espinho Remoso, Traíra, Paulo dos Anjos e muitos outros.
Contou que aprendeu a capoeira com um velho africano de nome Benedito, do qual praticamente nada sabemos, mas que sem dúvida também era um grande mestre.
Mestre João Pequeno, discípulo mais antigo de Mestre Pastinha na atualidade, certa vez, perguntado sobre o que torna alguém um mestre de capoeira angola, disse, com toda sua genial e simples sabedoria: "O que faz o mestre são seus alunos".
Essa frase nunca saiu da minha cabeça e penso que em grande parte explica a grandeza de Mestre Pastinha.
Em vida, não lhe faltaram os detratores, os invejosos, os que não souberam compreender sua mensagem e seu valor. Pior ainda, até mesmo após sua morte houve aqueles que tentaram diminui-lo perante a história.
Em vão.
Mestre Pastinha, por seu exemplo, dedicação e obra, alcançou estatura única.
Mais do que isso, tantos anos depois de sua chegada ao mundo dos ancestrais, as sementes que deixou, e que se transformaram em novas árvores, são a maior prova de sua dimensão maior.
Obrigado Mestre!
Obrigado por tanto que nos deixou.
Aqui, do lado de cá da kalunga, continuaremos nos esforçando para merecer o seu legado.
terça-feira, 4 de novembro de 2008
Poder de cura
Guarda dentro de si substâncias medicinais.
Cada detalhe tem um significado.
A tartaruga pode indicar a capacidade de transitar tanto no mundo dos vivos quanto no dos mortos, pois um ser anfíbio tanto mergulha quanto caminha fora da água.
Simbolicamente, a linha kalunga, que separa esses mundos, está sob as águas.
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
Remédios de Aruanda
Ai, ai, ai aiEu não tenho o livro comigo. Sequer me lembro do nome. O que li pertence à Mestra Paulinha e estava em Salvador. Mas me lembro bem da entrevista com a Makota Valdina Pinto, pessoa de imenso conhecimento da cultura afro-brasileira.
Quando eu cheguei de Aruanda
Trouxe muitos remédios
Dentro da minha capanga
Lá, Makota Valdina chamava a atenção para a importância de que as pessoas saibam por quê cantam certas músicas, em certas situações. Ela se referia de perto à religião, e citou como exemplo o refrão dessa música no começo do post, que por sinal faz parte do repertório do Grupo Nzinga.
Acho que entendo a preocupação da Makota. Certa vez, o Mestre Poloca ensinou que é normal não entendermos a princípio muitos dos códigos, rituais, letras e mandingas da capoeira, mas que é importante descobrirmos esses significados, sobretudo saber o que significam para nós mesmos.
No caso da nossa música aqui, sei que também é cantada em terreiros de candomblé e umbanda. E além de falar de uma forma poética da herança africana no Brasil, com certeza sopra muitos segredos.
Uma coisa que acho interessante sobre essa letra é a palavra "remédios". Aliás, já perguntava a Makota Valdina Pinto: "Por que remédios?"
Acredito que um pedaço da resposta pode estar, mais uma vez, em nossos ancestrais banto do Kongo. Na religião daqueles povos, os inquices, ou minkisi (plural de nkisi), são figuras sagradas, que passam por uma preparação ritual na qual adquirem poder curativo para as mais variadas enfermidades, físicas e espirituais. São, literalmente, remédios.
Seja qual for a resposta mais completa, minha convicção é que uma cultura que deixou uma marca tão profunda na religião (candomblé, umbanda), na música (samba, maracatu), nas folias (congada, capoeira), e muito mais, com certeza corre fundo na alma desse país. E pode aflorar a qualquer momento, com toda sua força e beleza.
sábado, 1 de novembro de 2008
Lutas da angola
No começo, era a briga pela sobrevivência.
A resistência contra a injustiça, diante de muita violência e sofrimento.
Rasteiras e cabeçadas contra a opressão.
Perseguição. Repressão. Dor.
A capoeira sempre sobreviveu.
E venceu muitas batalhas titânicas.
Pela liberdade, pela igualdade, por respeito.
Golpes, esquivas, mandingas e gingas.
Palavra, pensamento, filosofia e discussão.
Armas de ontem e de hoje.
Quais as lutas atuais da capoeira?
Com certeza, contra o racismo, tão real e dissimulado nesse Brasil.
Sem nenhuma dúvida, pelo reconhecimento do valor do saber tradicional.
Por uma velhice digna para os velhos mestres.
Pelo respeito à diversidade religiosa.
Etc. etc.
Dentre tantas lutas fundamentais, destaco uma, o combate ao machismo na própria capoeira.
Nenhuma surpresa, suponho.
Todo mundo sabe que essa é uma das bandeiras do Grupo Nzinga, um dos poucos no universo da capoeira angola com efetiva liderança feminina, sob a batuta de Mestra Paulinha e Mestra Janja.
Pra falar do tema, aproveito um material que preparei para um bate-papo do qual participei, sobre o papel da mulher na capoeira.
Foi no aniversário do Grupo Nzambi, da Mestra Elma, outra exceção que confirma a regra, em maio deste ano, aqui mesmo em Brasília. (Pus a foto aí em cima)
Primeiro, pego emprestada (sem autorização prévia) uma frase da Mestra Janja:
"Partindo da tese que toma a capoeira enquanto uma estrutura social capaz de representar variados entendimentos sobre a vida social, se apresentado historicamente com capacidade para transgredir vários códigos e normas da ordem nas suas lutas de proteção e preservação, tais transgressões não incorporaram até o presente momento a proteção e a preservação dos direitos da mulher." (Janja)
De fato, quem tem olhos de ver e ouvidos de ouvir já percebeu que a capoeira, arma de libertação, muitas vezes entra em contradição consigo mesma, a partir de certas posturas autoritárias, até abusivas, que tentam negar às mulheres o que lhes é de direito e merecimento. Por que isso acontece?
Certamente não sou a pessoa mais indicada para responder, mas resolvi dar meu pitaco. E, para começar, creio que devemos pensar em como temos lidado com a tradição. Sim, pois não é difícil perceber que ela é muitas vezes usada mais como instrumento de reprodução e perpetuação de relações de poder do que qualquer outra coisa. Aí, fica a pergunta: até que ponto ela pode e deve ser reinterpretada e resignificada?
Tome-se o exemplo do candomblé, religião professada por muitos capoeiristas. Historicamente, as mulheres têm nele um lugar de destaque, senão de liderança máxima, o que aliás não é comum entre as religiões de um modo geral. Apesar de terem brotado da mesma raiz, estranhamente, a capoeira se transformou em um feudo masculino.
No passado, as mulheres capoeiristas tinham que se masculinizar para ganhar espaço e respeito na capoeira. Basta ver seus apelidos: Maria Doze Homens, Rosa Palmeirão, Claudivina Pau-de-Barraca, Dora das Sete Portas, Maria Homem e Júlia Fogareira. Mulheres fortes, sem dúvida, que deixaram seus nomes na história. Mas será que ainda hoje as mulheres terão que conquistar seu espaço "na porrada"?
É triste costatar que em pleno século XXI as mulheres continuam se deparando com diversas formas de violência também no interior da capoeira. Há depoimentos de várias formas de assédio, passando pela agressão sexual e psicológica. E o que é pior, muitas vezes partindo dos próprios mestres, dos responsáveis pelos grupos ou de alunos mais experientes.
Por outro lado, é preciso reconhecer que há muitas maneiras mais sutis de opressão. As letras de músicas, por exemplo. No Nzinga, chegamos a mudar letras "tradicionais" e não posso negar que dá uma ponta de orgulho em ver que cada vez mais grupos soltam a voz para dizer que a capoeira "tem homem e tem mulher". Tampouco cantamos canções que reforçam estereótipos femininos negativos.
Enfim, a questão é complexa e merece nossa reflexão. E ação. Que as mulheres possam assumir posições de liderança em seus grupos por seu próprio valor e merecimento, como qualquer pessoa, "pegar o gunga" e ajudar a capoeira a cumprir, mais uma vez, sua vocação revolucionária e libertadora.
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
Frede Abreu
Tenho um bocado de material em casa: livros, artigos, matérias de revistas, entrevistas, etc.. São coisas que a gente vai juntando aqui e acolá, recebe de alguém, acha na internet, compra.
Então, vou usar este espaço para continuar garimpando nesse acervo. Não é nada de mais, mas pode ser útil para alguém.
Hoje escolhi falar de dois livros do pesquisador da capoeira Frede Abreu: "O Barracão do mestre Waldemar" e "Capoeiras: Bahia, século XIX". O primeiro é mais antigo, de 2003. Eu já tinha visto e até folheado um exemplar de um amigo meu, o Swai, mas só tempos depois vim a comprar. Comprei da mão do Mestre Lua Rasta, aqui mesmo em Brasília. Aliás, o mestre trouxe uma verdadeira quitanda da capoeira pra cá, com atabaques, berimbaus, livros, dvds, cds e mais.
Este Barracão é uma obra de fôlego. Bem pesquisado, escrito e ilustrado, é presença obrigatória em qualquer biblioteca sobre capoeira. O livro é um passeio pelas estórias da nata da capoeiragem baiana na primeira metade do séc. XX: além do próprio Waldemar da Liberdade, figuras como Nagé, Traíra, Caiçara, Maré, Cabelo Bom, Bimba, Noronha, Pastinha e Canjiquinha. Tem cada história de prender a gente na leitura. É começar e não querer mais parar. Uma verdadeira aula.
O segundo livro, Capoeiras, encomendei diretamente com o Frede, que me mandou o exemplar lá de Salvador. Esse, de 2005, veio para ajudar a preencher uma lacuna na historiografia sobre a capoeiragem baiana. Fruto de uma pesquisa invejável, esse trabalho esclarece muita coisa do período e, onde não é possível encontrar evidências, lança hipóteses convincentes. Imperdível.
É claro que elogiar o trabalho do Frede é chover no molhado. Todos conhecem sua competência. Ainda assim, queria compartilhar esses pensamentos com vocês.
sábado, 18 de outubro de 2008
quinta-feira, 16 de outubro de 2008
Filosofia banto
Na década de 30 do século passado, um missionário belga chamado Placide Tempels viveu 29 anos em missão no então Congo Belga, hoje a República Democrática do Congo.
Em contato com as populações residentes na bacia do rio Congo, ele escreveu "A filosofia banto" (La philosophie bantoue), publicado em 1949. Este livro é tão influente quanto polêmico.
O propósito de Tempels era entender o modo que esses povos pensavam e viam o mundo, principalmente sob o ponto de vista religioso. No entanto, muitos criticam o fato de que ele fez uma generalização, para todos os povos banto, de uma experiência restrita. Além disso, seu ponto de vista sempre foi o de um evangelizador cristão, com todos os preconceitos que isso significa.
Seja como for, feitas as devidas ressalvas, seu trabalho ainda é considerado fundamental para quem se interessa por filosofia africana.
Nei Lopes, em sua "Enciclopédia brasileira da diáspora africana", faz um resumo dos princípios básicos do livro:
1) o fundamento do universo e seu valor supremo é a vida e a força que a impulsiona e dela emana;2) todos os seres devem ser entendidos como forças e não como entidades estáticas;
3) em qualquer circunstância, deve-se sempre procurar acrescentar força à vida e ao universo e evitar sua diminuição;
4) ocorrendo essa diminuição, deve-se buscar a intervenção dos adivinhos e ritualistas, porque eles conhecem as palavras que reforçam a vida;
5) a morte é um estado de diminuição do ser; mas os descendentes vivos de um defunto podem, através de oferendas, transmitir a ele ainda um pouco de vida: o morto sem descendentes está condenado a uma morte definitiva;
6) um indivíduo se define por seu nome: ele é o seu nome; e este é algo exclusivo e íntimo, indicativo de sua individualidade dentro do grupo a que pertence; e
7) todo ser humano constitui um elo vivo na cadeia das forças vitais: um elo ativo e passivo, ligado em cima aos elos de sua linhagem ascendente e sustentando, abaixo de si, a linhagem de sua descendência.
Essa energia vital é o que costumamos chamar de Ngunzo.
Através dela, todos os seres, vivos ou mortos, se inter-relacionam e influenciam. Há ações de forças que tendem a diminuir a energia vital e outras que a aumentam, fazendo interagir harmonicamente todas as forças que Nzambi criou e colocou à disposição do homem.
É isso.
segunda-feira, 13 de outubro de 2008
Convoi funèbre d'un fils de roi nègre
AÚ
Na cosmologia dos bacongo1, o mundo dos espíritos, ku mpemba na língua quiconga, é um mundo invertido, onde se acumulam todas as potencialidades culturais, morais, físicas e espirituais. Ele se liga ao mundo físico por meio da kalunga, a linha sobre a qual se assentam os fundamentos da sociedade: a força da renovação, representada pelos jovens, a capacidade positiva das lideranças, e a experiência acumulada2.
Tais fundamentos sociais e filosóficos estão com certeza presentes na maioria dos grupos praticantes da capoeira angola, assim como em diversas outras manifestações ancoradas em raízes culturais tradicionais africanas.
Os movimentos de ponta-cabeça são uma característica da capoeira angola que logo sobressai quando a comparamos a outras culturas corporais, sejam elas artes marciais, danças ou mesmo terapias, existentes no mundo todo. De tão peculiares, seus variados aús, pontes, piões e bananeiras parecem revelar mais do que simples movimentos de transição entre duas posições em pé.
Nesse aspecto, a capoeira angola só é comparável ao hip-hop e, evidentemente, à capoeira regional. Mas a observação cuidadosa mostra que para além de uma motivação intensamente acrobática, angoleiros e angoleiras na verdade almejam um outro olhar sobre o mundo quando estão de cabeça para baixo.
Na capoeira angola, tanto o aú quanto a bananeira são definidos pela persistência do olhar sobre o outro, pela naturalidade do “andar” sobre as mãos, e por um cuidado em estar “fechado”, com as pernas flexionadas e prontas a defender o resto do corpo. Certamente é intrigante a pergunta sobre a origem dessa postura mais do que puramente estética.
Já se supôs ser essa uma reminiscência de um ritual iniciático, ou o resultado do objetivo de desenvolver uma técnica que demonstrasse a superioridade do negro sobre o branco, até mesmo símbolo do desejo de quebrar uma ordem social opressora, de conquistar a liberdade3. Talvez sim, mas é igualmente possível que haja uma razão mais profunda, ligada a valores religiosos herdados dos africanos.
Nesse sentido, parece mais do que simples acaso que os bacongo falem em na wu, literalmente um “movimento giratório”, quando descrevem o nosso aú4. A semelhança fonética é surpreendente, ainda que, de acordo com o dicionário Houaiss, a palavra brasileira tenha “origem obscura”. Tudo isso leva à indagação: Seria esse movimento, assim como plantar bananeira, uma evocação do mundo espiritual? Ou ainda, um legado da visão de mundo dos bantos da África Central ao Brasil?5
1 Refiro-me aqui aos povos do antigo Reino do Congo, que remonta pelo menos ao séc. XIII, e também aos de sua zona de influência cultural imediata, que hoje alcançaria, principalmente, os territórios da República Democrática do Congo (RDC), de Angola, da República do Congo (Brazzaville) e do Gabão.
2 Ver Fu-Kiau (2001).
3 Ver Lewis (1992).
4 Ver Thompson, prefácio, em Lewis (1992).
5 Nesse caso, pouco importa que tais laços encontrem ou não uma elaboração verbal nesses termos por parte de praticantes da capoeira angola, mas sim que façam parte de seu patrimônio tradicional herdado e cultivado.
domingo, 5 de outubro de 2008
sábado, 4 de outubro de 2008
Meu caminho
Para Mestra Janja
Hoje eu faço o meu caminho
O caminho que me faz
Quantos anos na estrada?
Os meus mestre sempre mais!
Eh, foi na volta do mundo, colega véi
Na volta que o mundo dá
Tava andando sem meu rumo
Ai, ai, ai, Não podia nem pará.
Encontrei a capoeira
Oh meu Deus, Foi aqui neste lugar
Hoje eu canto pra Pastinha
Hoje eu sei a quem louvá.
Tantas lutas, tanta dor
Nunca deixo de lembrá
Quem aceita a injustiça, oi ai ai
Se perdeu sem se achá
Na roda da capoeira...
Na roda da capoeira!
Essa luta eu vou lutá.
Meu irmão, meu camarada
Ouça bem o meu cantá
A cobra mordeu o rabo
Seu veneno é de matá.
Se não sei pra onde eu vou
Ah, eu nunca chego lá
Quando esqueço de onde vim
O que eu fiz foi me enganá.
Salve mameto Kalunga
E também o Pai Lemba!
Camaradinho....
sexta-feira, 3 de outubro de 2008
quinta-feira, 2 de outubro de 2008
Tempo
"Por seres tão inventivoCaetano Veloso, em "Oração ao tempo"
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo..."
Quanto tempo é necessário para se tornar um mestre de capoeira angola?
Quanto tempo deve durar uma roda de capoeira?
E um golpe?!
Tempo é um dos inquices, uma das divindidades, do panteão do candomblé de angola.
Também é chamado de Kitembo.
Acredito que não tenha correspondente nos cultos das vertentes iorubá e jeje.
Pelo que aprendi, rege os ritmos e ciclos da vida: as estações do ano, o clima, as colheitas, a reprodução, os ventos e tempestades, o dia e a noite, a lua e o sol, o envelhecimento, a morte.
Pedro Abib, aluno do Mestre João Pequeno, fala um pouco sobre a noção africana de tempo em seu livro "Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda".
A cultura ocidental tem um apego imenso ao presente, enquanto que na perspectiva africana o passado não morre. Vive no presente e se projeta para o futuro, como uma luz sobre o caminho.
Ou seja, o tempo não é uma linha reta e sim uma espiral, um movimento circular. O hoje está prenhe de ontem, de modo que o que se passou renasce a todo momento.
Essa circularidade do tempo tem representação, por exemplo, no cosmograma kongo, na imagem da serpente que morde a própria cauda, e na idéia de sankofa.
Na capoeira angola, não seria a constante lembrança das "voltas que o mundo dá" parte dessa visão?
Sem falar em vários outros elementos em que a referência circular é fundamental, a começar da própria roda!
Aliás, vale lembrar que na África, o berimbau também serve para promover a comunicação com os mortos, os ancestrais. Será daí que vem a sua incrível força?
Seja como for, guardo comigo a lição de que a contagem mecânica, puramente cronológica do tempo é uma simplificação. Talvez devêssemos falar em tempos, no plural.
Voltando ao começo deste post, como decretar o tempo, quiçá em meses ou anos, necessário para alguém se tornar um mestre?
Ninguém diz, mas mesmo assim sabemos que há um tempo certo, que etapas devem ser cumpridas, que os degraus não podem ser maiores do que as pernas.
Enfim, que Kitembo é soberano.
quarta-feira, 1 de outubro de 2008
terça-feira, 30 de setembro de 2008
domingo, 28 de setembro de 2008
Cordel
Outro dia, por exemplo, o Esquilo, um visitante, me presenteou com o livreto "Manduca da Praia - O lendário capoeira do Rio Antigo", de Victor Alvim Itahim Garcia, apelido Lobisomem. A capa é essa aqui à direita. É obra recente, de 2007, com patrocínio do programa Capoeira Viva.
Outro cordel com temática capoeirística foi autorado por André Luiz Lacé Lopes e se chama "Capoeiragem no Rio de Janeiro e no Mundo" (capa à esquerda). Editado em 2004, é obra abrangente na abordagem, indo da capoeiragem carioca à capoeira angola, com direito a citação ao Grupo Nzinga.
O caso mais conhecido deve ser o da "Peleja de Manoel Riachão com o Diabo", de Leandro Gomes de Barros, que surgiu no final do século XIX. Trechos dele já foram cantados, entre outros, pelo Mestre Waldemar e pelo Mestre Moraes. A capa aqui à esquerda é de uma edição que me foi enviada pelo amigo Alan Boccato.
É fato conhecido que Mestre Waldemar da Liberdade também bebeu (ou comeu...) em outro cordel, o "A vida de Pedro Cem", do mesmo Leandro Gomes de Barros, cuja capa reproduzo ao lado.
É longo, mas imagino que valha a pena...
A história do Valente Vilela
De um home muito valente
Que morava num lugá
E até o próprio Gunvêrno
Tinha medo de o cercá.
Vilela era natural
Do sertão pernambucano,
E ele, desde o princípio
Que tinha o gênio tirano:
Comete o primeiro crime
Com a idade de dez ano.
Com doze ano de idade,
numa véspa de São João,
Vilela mais o seu mano
Tivero uma alteração;
Só por causa de um cachimbo,
Vilela mata o irmão.
Com quinze ano de idade,
Passando os três ao depois,
Vilela monta a cavalo,
Vai ao campo atrás duns bois;
Encontrou quatro rapaz;
Atirou num, matou dois.
Preparou-se pra caçá
Num domingo bem cedim,
Carregou a espingarda
Para matá passarim,
E na berada de um poço
Mata o fio de um padrim.
Casou com dezoito ano.
Com seis meze de casado,
Tando, um dia, trabaiando
Na derruba de um roçado,
Devido à queda de um pau
Vilela mata o cunhado.
O Agente de Puliça
Tratou de o persegui,
Sempre botando piquete
Mas Vilela sem cai,
Porque sabia de tudo
Pois era fio dali.
O Agente de Puliça,
Vendo que não o prendia,
Escreveu pra Capital,
Vê o que o Chefe fazia,
E exigindo grande tropa
De Linha e Cavalaria.
Nisso, o Chefe de Puliça
Mandou-lhe trinta soldado,
Agraduou um Tenente
Com ordes de Delegado:
Morreu, não escapou um
Para trazê-lhe o recado.
Ele tornou a mandá
Trinta e um homem iscuído,
Agraduou um Tenente
Este era mais destemido;
Morrêro da mesma forma
Que os outros tinha morrido.
Então, depois de seis mês,
Mandou outro contingente
Que tinha quarenta praça
E um cabo muito valente:
Escapou o corneta-mó
Pra se acabá de doente.
Este, chegando no Corpo,
Espaiou na Companhia,
Que era asnêra mandá tropa
Que o homem ninguém prendia,
Que a força levava tiro
Sem sabê de onde saía.
Fala o Alfere Negreiro
Ao Fiscal do Bataião:
- Basta o Comandante dá-me
Um mandado de prisão,
Eu mostro se esse Vilela
Visita a cadeia ou não!
Disse o Comandante a ele:
- Alferes, a coisa é medonha!
Você, cumo se oferece,
Acho bom que se diponha:
Você vai, não trás o home,
Chega aqui, me faz vergonha.
O Alfere disse a ele:
- Eu sei porque me ofereço;
Deixe eu escuiê a escolta
Dos soldados que eu conheço:
Se eu não trouxer preso ou morto,
Nunca mais que eu apareço!
Tendo o mandado de orde,
Os soldados se arrumáro;
Na manhã do outro dia
Se despidiro e marcháro;
Fora com muito cuidado,
Com quinze dia chegáro.
O Alfere entrou no Distrito
Às oito horas do dia:
Escreveu pro Delegado
Que lhe mandasse um bom guia,
Que lhe mostrasse o Vilela,
Que ele ali nada sabia.
O Delegado, em pessoa,
Saiu correndo até lá:
- Seu Alfere, eu vim aqui
Somente lhe aconseiá...
Si vem prender o Vilela,
Eu sou de acordo é voltá!
O Alfere respondeu:
- O sinhô logo não vê
Que esse pedaço de home
Que Deus consentiu nascê
Não morre antes de tempo,
Nem corre sem vê de quê?
Sai o Alfere vagando
Pelos campos do sertão...
Adiante encontra um rapaz
E dá-lhe voz de prisão:
- Você me mostra o Vilela,
Quer você queira, quer não!
Lhe disse o rapaz chorando:
- Que é que eu hei de fazê?
Eu vou mostrar o Vilela
Mas na certeza de que:
Tropa que cerca o Vilela
O resultado é morre...
- Siga, siga, rapazim,
Quando avistá a fazenda,
Chegue pra perto de mim,
Fale baixo que eu compreenda
Que é pr’eu botá-lhe num canto
Onde bala não lhe ofenda.
Pelas dez hora da noite
Diz, de repente, o rapaz:
- A casa do homem é aquela
Pregada àqueles currais,
Junto daqueles cercado,
Acostada por detrás.
Ai o rapaz foi solto
E a toda pressa voltou,
Correndo de serra abaixo,
Sem medo dos tombadô;
Parece que criou pena,
Bateu as asa, voou...
Saiu de ponta de pé
Tudo quanto era soldado...
Vilela, como ispriente,
Na sua rede deitado.
Acorda e diz à mulhé:
- Minha véia, eu tou cercado!
Fala o Alfere na porta:
- Vilela, tem paciença!
Vilela, me entrega as arma,
Eu não quero é violença...
Trata de compô a casa
Pr’eu fazê a diligença!
- Do tamanho que é a cozinha
Também pode sê a sala;
Da grossura do revólve
Também pode ser a bala...
Óio e não vejo ninguém,
Seu Alfere!Quem diabo é que me fala?
- Vilela, me abra a porta,
Deixe de machaveliça,
Conheça que tá cercado
Pela tropa da Puliça!
No Bataião me acompanha
Oficial de Justiça.
- Seu Alfere Delegado,
Eu não engano ninguém!
Muito lhe agradecerei
Não me enganando também...
Queira dizê, não me engane,
Seu Alfere!Quantas praças é que vem?
- Vilela, eu não te engano;
Trago cento e oitenta praça,
Negro nascido em baruio,
Criado em mêi de desgraça...
Pra te mandá pra outro mundo
Nem eu nem ninguém se embraça!
- Com ceito e oitenta praça
Brigo em pé, brigo de cóca...
As balas estralando em mim
E mio abrindo em pipoca...
E eu dou meu pescoço à forca,
Seu Alfere,Si me achá uma barroca!
- Si qué sê preso com honra,
Se renda, não faça ação!
Vim lhe buscá preso ou morto,
Não quero escutá sermão...
Ou você me abre a porta
Ou vai vê ela no chão!
- Eu só fazendo consigo
C’umo c’o cometa-mó...
O mió que o sinhô faz
Ê ganhá os mororó!
Mas si é de quebrá-me a porta,
Seu Alfere,Eu vou abri que é mió...
- Vilela, eu tenho comido
Toicinho com mais cabelo,
Mas o diabo é quem queria
Está hoje no seu pêlo...
Salte pro campo da honra,
Deixe, ao meno, eu conhecê-lo!
- Seu Alfere Delegado,
Largue de tanto zum-zum,
Que o homem que mata cem
Pode interar cento e um...
Eu hoje inda não comi,
Seu Alfere,Com você quebro o jejum!
- Vilela, você se engana,
Eu venho atrás de teu nome...
Tu és a trigue da terra,
Vilela, mas não me come!
Devido à corage, não,
Vilela, eu também sou home...
- Seu Alfere Delegado,
Vá procurar seu camim,
Vá criá sua famia,
Deixe eu criá meus fiím
Porque, si eu saí lá fora,
Seu Alfere,Sei que lhe encontro sozim!
- Vilela, eu tiro-te a moda
De matá pra estruí...
Ainda mêrmo eu sozim,
Não te deixo escapuli!
Si não abre a porta, diga
Que é pra vê ela caí.
- Seu Alfere Delegado,
Se mostra sê animoso...
Si não fô lambança sua,
Já vi home corajoso!
Mas botá-me a porta abaixo, Seu Alfere
Isto é que eu acho custoso...
- Vilela, tem paciença,
Vigie que eu lhe falo séro;
Desta feita você segue,
(Isto é quero porque quero)
Ou em corda pra cadeia
Ou em rede pro cimitéro!
- Seu Delegado, eu carrego
Comigo uma opinião:
Boi solto se lambe todo
Eu não me entrego à prisão!
Quero mêrmo que se diga,
Seu Alfere,Morto sim, mas preso não!...
- Vilela, me abra a porta,
Você só tem é relaxo...
Si você não abre, diga,
Que é pr’eu botá ela abaixo!
No encruzá dos batente
Teu sangue desce em riacho...
- Seu Alfere Delegado,
Conheça que eu não lhe engano:
Si botá-me a porta abaixo,
De dentro espirra tutano!
Si eu batê mão ao cangaço,
Seu Alfere,Chove bala vinte ano!
- Vilela, não seja besta,
Você não me faz terrô...
Eu trago é tropa de linha
Do Monarca Imperadô!
Eu lhe levo preso ou morto,
Sem você eu lá não vou!
- Seu Alfere Delegado,
Esta razão me agradou:
Você diz que é muito home,
Si é por fome, eu também sou!
Previna o destacamento,
Seu Alfere,Se prepare que eu já vou...
Quando o Alfere escutou
Bolí lá dentro nuns trem,
Previne a rapaziada:
- Prepara que o home aí vem!
(rodou a casa, sozim
Não encontrou mais ninguém).
- Seu Alfere Delegado,
Sua canáia corrêro...
E o sinhô o que é que faz
Que não ganha os marmelêro?
Mêrmo aqui só canta um galo, Seu Alfere,
Que sou eu neste terrêro!
Estando o Alfere oiando,
Notou que a porta rangiu,
Mas o escuro era tanto
Que ele oiou porém não viu...
Quando o Vilela pulou,
Logo dois tiro partiu.
- Seu Alfere Delegado
Atira mais que um Majó!
Eu cuidei de atirá bom,
Mas ele atira mió...
Entrou um tiro no outro,Seu Alfere,
Que me pareceu um .....
- Vilela, que é que eu te disse?
O Alfere véio não correu...
Fez negaça, desgraçou-se!
Buliu c’os quarto, morreu!
Você inda tá renitente
Porque não sabe quem sou eu...
- Seu Alfere Delegado,
Cade a força que tinha?
Só o sinhô não correu!
Tanto soldado que vinha...
Quem chegou aqui por galo,Seu Alfere,
Vai voltá cumo galinha...
O Alfere pegou no rife,
Ficou o tempo tinindo:
Era o dedo amolegando
E o fumaceiro cobrindo,
Batendo as bala em Vilela,
Voltando pra trás zinindo...
- Seu Alfere Delegado,
Bote fora o cravinote!
Pensa o sinhô que me ofende
Isso é bala de badoque...
Hoje nem Jesus lhe livra,Seu Alfere,
Da ponta do meu estoque!
Deixáro as armas de fogo,
Cada qual o mais ligêro;
Pegáro-se esses dois home
Em luta pelo terrêro:
Os punhaes davam faísca
Que só forja de ferrêro!
- Seu Alfere Delegado,
Nós vamo à marge do rio,
Assolamo pau e pedra,
Parecemo dois navio:
Deixemo as arma de fogo,Seu Alfere,
Já tamo é no ferro frio!
Com duas horas de luta,
O Alfere não pressentiu,
lntropicou de repente
E num buraco caiu:
Vilela saltou em cima
E, de malvado, se riu.
- Logo no primeiro salto
Perdeste o pé da chinela...
Que é do sinhô agora
Com a minha mão na guéla,
Com meu joêio em seus peito,Seu Alferes,
E meu punhal na costela?
Vilela, não é vantage,
Matá um home à treição:
Você, por pegá-me agora,
Devido a um intropicão,
Vai me matá cumo home,
Porém por covarde, não!
- Seu Alfere Delegado,
Bem cancei de lhe dizê...
Bem que eu tava descançando,
Viéro me aborrecê...
Hoje aqui só Deus lhe acode, Seu Alfere,
Se prepare pra morrê!
Disse o Alfere consigo:
Ó meu Deus tão poderoso,
Tende compaixão de mim,
Eu sou pai e sou esposo,
Livrai a mim de engulí
Este bocado amargoso.
Mas quando o Vilela tava
Com ele muito entretido,
Pensando que daí a pouco
Tivesse o Alfere morrido,
Saiu-lhe uma voz de parte:
- Não mate o home, marido!
- Saia-se daqui, mulhé,
Com o diabo de seus consêio!
Si o Alfere me matasse,
Você não achava feio...
Cumo eu tou matando ele,
Semvergonha,
Tu vem te metê no meio!
- Marido, não mate o home
Que ele nem lhe deu motivo...
Jesus foi tão judiado,
Sofreu, não foi vingativo.
Si és de matá o Alfere,
Me mate, deixe ele vivo!
Eu, quando ouvi as pisada,
Conheci que era você...
Certamente lá em casa
Não tem mais o que fazê!
Mêrmo em briga de dois home,
Descarada,Mulhé não tem que vim vê...
- Marido, eu nem nunca vi
Um gênio como esse teu...
Como é que tu quê matá
A quem nunca te ofendeu?
Si a tua tenção é esta,
Solte ele e mate eu!
- Não sei o que tem mulhé,
Que todas são cavilosa...
Para brigá c’os marido
São danada de teimosa!
Quando é pra fazê pedido, Cara lisa,
Tu fica toda dengosa...
- Marido, não mate o home
Que é casado e tem famia...
Você matando o Alfere,
Os inocente quem cria?
Veja que somo casado
Pode precisá-se um dia.
- Pois, então, diga ao Alfere
Que corra pelas estradas...
Sinão, ele sai daqui
Vendendo azeite às canada!
Diga que a minha mulhé, Seu Alfere,
Foi a sua adevogada!
Saiu o Alfere dali,
Tristonho e desconsolado
Porque se via sozim,
Sem sabê dos seus soldado!
Com o desgosto que teve,
Morreu no mato enforcado!...
Acaba o Vilela a briga
Também munto arrependido;
Saiu por detrás de casa,
Até dos fio escondido
Que nem mesmo a mulhé dele
Soube mais do seu marido...
- Mulhé, eu fiz seu pedido:
Não matei aquele hoine,
Mas me vou, de mato à dentro,
Me acaba de sede e fome,
Vou comê das fruita braba,
Porque quero,
Daquelas que os bruto come.
Sai o Vilela de casa,
Nos mato escói um canto,
E ninguém nunca pensava
Que ele vivesse tanto...
E, ao cabo de quarenta ano,
Morreu Vilela e foi Santo!
Alviça, meu povo todo,
Que a minha história acabou-se:
O Alfere foi valente
E, de valente, enforcou-se!
Mais valente foi Vilela:
Morreu, foi Santo e salvou-se!!!